O destino de Petr Ginz

“No próximo ano em Jerusalém”, diziam os judeus na Diáspora. Digo eu também: no próximo ano, ou no próximo mês, passem pela cidade e visitem o Museu do Holocausto, o novo Yad Vashem, um prodígio de arquitetura desenhado por Moshe Safdie para explicar o horror aos turistas, partindo do pressuposto de que o horror se explica.

O museu é simples como conceito: um túnel subterrâneo em forma triangular que rasga a montanha de um lado ao outro. O visitante entra pela Avenida dos Justos entre as Nações, um memorial de árvores a todos aqueles que arriscaram a vida para salvar judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Como o português Aristides de Sousa Mendes (1885 – 1954), cônsul em Bordeaux, que assinou milhares de vistos para refugiados contrariando as ordens diretas de Salazar. Depois o turista despede-se da luz e entra literalmente nas trevas.

Yad Vashem
Desenho de Petr Ginz levado na última viagem do Columbia
Desenho de Petr Ginz levado na última viagem do Columbia

Escuridão. Salas contíguas que vão mostrando, mais do que explicando, os momentos decisivos que levaram à destruição. Começamos com as comunidades judaicas, plenamente integradas na Europa, antes da década de 1930. Mas depois as perseguições têm início com a chegada de Hitler ao poder em 1933; a normalidade é desfeita; e, em 1942, a “solução final” é posta em marcha. Em cada sala, encontramos o testemunho físico do que ficou. Objetos pessoais. Reconstituições de ruas, casas, guetos. Os filmes clandestinos das execuções clandestinas. Testemunhos de sobreviventes.

E, na última divisão do túnel, a sala dos que não sobreviveram, chamada Sala de Todos os Nomes, por nela estarem os nomes das vítimas que foi possível resgatar e relembrar. Existe luz ao centro, onde se ergue uma cúpula onde centenas de rostos olham para nós. Fotos de homens, mulheres. Velhos, crianças. É provável que, entre esses rostos, esteja o de Petr Ginz.

Nascido em Praga, em 1928, Petr Ginz é o autor do último grande diário sobre o Holocausto, uma obra recentemente descoberta e publicada em circunstâncias que desafiam a credulidade humana.

Aconteceu em 2003, quando a nave espacial “Columbia” incluiu na sua tripulação um astronauta judeu e israelita, Ilan Ramon, também ele filho de uma sobrevivente de Auschwitz. Convidado a levar consigo um símbolo da história judaica, e mais precisamente da tragédia judaica, Ramon acabaria por escolher o desenho de uma criança, entre as centenas que o Yad Vashem tem à sua guarda. O autor do desenho era um rapaz tcheco de 14 anos, chamado Petr Ginz. E o desenho, uma paisagem lunar — ou, mais precisamente, uma paisagem do planeta Terra, vista a partir da Lua.

O destino do “Columbia” seria funesto: ao reentrar na atmosfera terrestre, no dia primeiro de fevereiro de 2003, a nave espacial acabaria por explodir. As notícias do desastre correram o mundo. E, com o desastre, o nome dos astronautas, os objetos que levaram na missão e o nome desconhecido de um desconhecido Petr Ginz, o autor do desenho, e que nesse fatídico dia de fevereiro de 2003, se estivesse vivo, completaria 75 anos de idade.

Peter Ginz fora executado em Auschwitz em 1944, com dezesseis anos. Mas, em 2003, quando as imagens do seu desenho ocuparam as primeiras páginas, alguém em Praga reconheceu o traço do autor e contatou o Yad Vashem de Jerusalém. Um anônimo proprietário da nova República Tcheca encontrara numa antiga casa da capital seis cadernos com textos e desenhos que, com muita certeza, pertenceriam a esse tal “Petr Ginz”. Seria possível?

Os cadernos foram prontamente analisados pelo museu, que os autenticou como verdadeiros. Mas eles foram sobretudo analisados e autenticados por uma pintora israelita ainda viva, de nome Chava Pressburger. Sessenta anos antes, em Praga, fora ela quem os oferecera a seu irmão Petr, para que ele pudesse desenhar e escrever.

Divulgação
Foto tirada em 1934 mostra os irmãos tchecos Eva e Petr Ginz
Foto tirada em 1934 mostra os irmãos tchecos Eva e Petr Ginz, vítimas do nazismo

O resultado desta descoberta pode hoje ser lido, e contemplado, em “The Diary of Petr Ginz: 1941-1942” (Atlantic Monthly Press, 180 págs.). Encontramos os desenhos, sim, a começar pelo desenho lunar com que Ginz regressou ao mundo dos vivos no dia do seu aniversário, em 2003. Encontramos excertos dos seus cinco romances inéditos, que o pequeno prodígio escreveu entre os 8 e os 14 anos. Mas encontramos sobretudo dois cadernos que descrevem a vida de um rapaz numa Tchecoslováquia ocupada, entre 1941 e 1942, antes da primeira deportação para o campo de Theresienstadt. E, já no campo, encontramos os artigos que ele escreveu para uma revista que ele próprio editava, de nome “Verdem” (“Nós Lideramos”, ou “Nós Venceremos”, segundo a tradutora Elena Lappin). E encontramos, finalmente, excertos do diário da irmã, Chava, também ela deportada para Theresienstadt em 1942: são os excertos da sua despedida de Petr, quando este, aos dezesseis anos e “já sem as feições de uma criança”, fez a sua última viagem para Auschwitz.

Especialistas na literatura sobre a Shoah estabeleceram de imediato comparações entre o diário de Petr Ginz e a obra célebre de Anne Frank. Entendo a tentação: o diário de Frank é também o produto de uma adolescente que, entre os 13 e os 15, testemunhou por escrito o medo e a destruição em volta. Mas existe uma diferença crucial: o diário de Anne Frank presta-se a uma leitura “literária” porque ele surge escrito com uma preocupação estética evidente. É, se preferirem e no sentido mais estrito do termo, um documento expressivo e “sentimental”.

O texto de Ginz é anti-sentimental, mesmo nos seus momentos mais pungentes. Ou, inversamente, o diário de Ginz é pungente precisamente pela capacidade do autor em permitir que o horror absoluto seja sugerido pela ausência, pelo silêncio, pelo não-dito. O tom é contido. A ironia também. Os fatos são registrados como fatos (como nos diários de Victor Klemperer), com um distanciamento “científico” e impessoal. Como se a obsessão pela verdade impedisse qualquer concessão emotiva.

Mas o que impressiona no diário de Ginz não é apenas a secura do que é dito. Impressiona a forma como o autor vai relatando a gradual contaminação das rotinas diárias por uma inescapável sombra de morte.

Nas páginas do diário, encontramos o que é suposto encontrar num rapaz de 14 anos. A escola, a família, os amigos. Os passeios. O registro minucioso dos presentes recebidos no aniversário (um bolo, laranjas, livros de empréstimo). E algumas histórias de humor — como o dia em que os vizinhos, tomados por comoção súbita, abandonaram a idéia de degolar um peru, optando antes por lhe ministrar Veronal. “Mas então o peru, já depenado, despertou subitamente”, conta Petr a 20 de fevereiro de 1942, “e, como estava frio, vestiram-lhe uma camisola, e é assim que ele agora anda pela rua”.

São risadas que duram pouco. O horror começa a chegar. Ginz ainda recebe os primeiros sinais com inusitada ironia: se os judeus têm de usar uma estrela na roupa, para sinalizar a sua condição inferior, ele confessa nas páginas do diário que, a caminho da escola, conseguiu contar 69 “sheriffs”. É a cidade de Praga transformada em Faroeste.

Mas depois os vizinhos começam a desaparecer. As deportações chegam (primeiro, à noite; depois, a qualquer hora do dia). Os amigos da escola despedem-se, ou deixam simplesmente um banco vazio. Os familiares conhecem igual destino — um tio, uma avó. E chegam também as proibições oficiais: freqüentar cafés; usar transportes públicos; ler os jornais; possuir instrumentos de música, câmeras fotográficas, um simples termômetro para medir a febre. Chega a escassez, chega a fome. E, para Petr Ginz, chega a desumanidade da deportação para Theresienstadt, a primeira etapa para o destino final e letal em Auschwitz-Birkenau. A desumanidade que ele, um rapaz de 14 anos, consegue pressagiar no poema que se segue:

Hoje é claro para todos
Quem é Judeu e quem é Ariano,
porque é possível reconhecer os Judeus à distância
pela sua estrela negra e amarela.
E os Judeus assim marcados
têm de viver de acordo com os princípios ditados:

Sempre, depois das oito da noite,
Fica em casa e tranca a porta;
trabalha apenas com uma pá, ou uma enxada
e sem ouvir o rádio.
Não podes ter um rafeiro;
os barbeiros já não podem cortar o teu cabelo;
uma senhora judia, outrora rica,
não pode ter um cachorro, mesmo pequeno;
não pode enviar os seus filhos para as aulas
e tem de fazer as compras entre as três e as cinco, são as ordens.

Não pode ter pulseiras, alho, vinho,
ou ir ao teatro, ou sair para jantar;
não pode ter carros, ou um gramofone,
casacos de peles ou skis ou um telefone;
não pode comer cebolas, porco, ou queijo,
não pode ter instrumentos musicais; ou fôrmas para cozinhar;
não pode ter um clarinete
ou ter um canário como animal de estimação,
alugar bicicletas ou barômetros,
ter meias de lã ou camisolas quentes.

E especialmente o Judeu ostracizado
deve largar todos os hábitos do passado:
ele não pode comprar roupas, não pode comprar um único sapato,
porque vestir elegantemente não é para ele;
não pode ter aves domésticas, creme de barbear,
ou geléia ou algo para fumar;
não pode ter licença para dirigir, ou comprar algum gim,
ou ler revistas, ou um simples boletim,
comprar doces ou ter uma máquina de costura;
ao campo e às lojas ele não pode ir,
nem mesmo para comprar
um único par de roupa interior,
ou uma sardinha, ou uma pêra madura.

E se esta lista não está completa,
é porque há mais, portanto sê discreto;
não compres nada; aceita a derrota completa.

Caminha para onde desejas ir,
Mas só à chuva, ao granizo, sob saraiva ou sob neve.
Não deixes a tua casa, não puxes um carrinho de bebê,
Não tomes um ônibus ou trem ou bonde;
tu não és permitido num trem veloz;
não tomes um táxi, não te lamentes,
por mais sede que tenhas,
num bar não entres;
as margens do rio não são para ti,
nem o museu, ou o parque, ou o zôo
ou nadar na piscina, ou ir ao estádio, ou
ir aos correios, ou a uma repartição pública,
ou à igreja, ao cassino, ou à catedral,
ou a um público urinol.
E está atento para não usares
ruas principais, e sai das avenidas!
E se desejas respirar algum ar fresco
vai ao jardim de Deus e caminha por lá
por entre as sepulturas do cemitério
porque nenhum parque existe para ti.

E se fores um judeu esperto
irás encerrar a tua conta bancária e também
abandonar outros hábitos
como encontrar os arianos que um dia conheceste.

Ao judeu era-lhe permitido um cabaz,
Uma pasta, uma sacola, uma mala de viagem.
Mas agora ele perdeu todos esses direitos.
Todos os judeus preferem nada ver
e seguir todas as regras
e nada saber.

*

“No próximo ano em Jerusalém”, diziam os judeus da Diáspora. Digo eu também: no próximo ano, ou no próximo mês, passem pela cidade e visitem o novo Yad Vashem. É um túnel subterrâneo, sim, mas todos os túneis, por mais longos que sejam, têm sempre um princípio e um fim.

Escrevi anteriormente que o novo Museu do Holocausto termina na Sala de Todos os Nomes, onde centenas de rostos nos contemplam. Erro meu, leitores, pelo qual me penitencio: na verdade, quando deixamos a sala final, ainda existe uma última etapa. O fim do túnel: um balcão que abre diretamente para o ar da manhã, para a luz do dia. E para a cidade de Jerusalém, ao fundo. Como uma promessa, uma redenção, um destino. Como uma simples celebração de vida.

É a imagem que fica.

João Pereira Coutinho

A conquista da noite

Defendo o sono sempre que posso. Não brinco. Não posso brincar. Sou um ex-insone e sei bem o que custa. Só insones verdadeiros valorizam o sono com o respeito que o sono merece.

Tudo começou sem explicação racional. Certo dia, o sono foi embora. Contemplei o tecto do quarto durante uma noite inteira. Vieram mais duas. À terceira, a minha vontade era morrer. O problema da insónia não está propriamente na noite. A noite é simples: a escuridão é amiga dos olhos, o silêncio é uma canção de embalar para uma cabeça cansada. O problema do insone são os dias: o terror do dia que chega, a luz que vai furando as persianas do quarto como balas de ouro que trazem consigo o ruído do mundo. Carros. Sirenes de polícia. Vozes. Conversas. Telefones que tocam. Telefones que imaginamos tocar. E a certeza – a longa certeza – de que a noite chegará. E, com a noite, a evidência de uma nova cruzada. Uma solitária cruzada. Não existe solidão comparável à do insone. Na vida normal, conhecemos pessoas, perdemos pessoas. Ficamos sós. Tudo bem. Ou tudo mal. Mas a solidão do insone é uma solidão desabitada de pessoas. Somos nós e nós e nós. O mundo dorme e nós somos sós.

Disse que tudo começou sem explicação racional. Minto. Lembro agora que a insónia veio com o medo. Da morte, claro. Não sei se li demasiado Shakespeare para saber que os crimes, como em ‘Macbeth’, se cometem à noite. Adormecer para quê se o sono só traz esquecimento? Se o sono é um simulacro da morte? Melhor não dormir. Melhor não morrer. O caso é cientificamente interessante – disse o analista. O caso é mitologicamente relevante – diz Peter Barber, em artigo recente para o ‘Financial Times’. Como relembra o autor, os filhos de Nyx, a deusa grega da noite, eram Hypnos e Thanatos. O Sono e a Morte. Só depois chegou Morfeu, o deus dos sonhos, o filho do Sono.

Não mais. Conta Peter Barber, em tom cético mas ligeiramente festivo, que o sono e os sonhos podem ser relíquias no espaço de dez anos. A ciência não pára. O mundo também não. E uma pílula pode resolver o problema dos homens. Dos homens que dormem. E dos homens que não dormem. A ideia é mimetizar quimicamente o sono, proporcionando o que apenas obtemos com oito ou dez horas de travesseiro: descanso.

Esqueçam o travesseiro. Para quê gastar um terço da vida a dormir quando é possível furar os dias, e as noites, perfeitamente acordados? Será, como dizem os cientistas, a ‘conquista da noite’, a barreira última do desenvolvimento pós-industrial. Os nossos antepassados regulavam a vida, e o sono, pelo ritmo natural da luz natural. Deitavam-se com a noite, acordavam com a madrugada. Esse mundo passou quando a lâmpada de Edison lançou uma maldição sobre os homens, criando um sol privado em cada habitação. O desafio, agora, é criar um sol privado no interior de cada um. Dormir para quê se é sempre dia dentro de nós?

Dias para trabalhar, explica Barber, porque as novas vigílias não se farão sem trabalho. A lógica é impoluta: viver mais é consumir mais; consumir mais é trabalhar mais. Nenhuma pausa, nenhum silêncio. Como formigas sem inverno. Como formigas de um verão permanente.

Mas não só. O fim do sono não será apenas um convite para uma vida de servidão. Será também o enterro da nossa humanidade mais literal. Disse no início que a minha insónia começou sem explicação racional. Mas eu sei como terminou. A indústria farmacêutica teve uma palavra no processo. O divã também. Mas a palavra decisiva foi a minha. A palavra decisiva é sempre a nossa. Chegou um momento – consciente, inconsciente – em que a insónia foi enxotada do quarto como se o medo fosse um animal feroz e sem rosto. O animal afastou-se. Só então o sono regressou. Verdade que não regressou sozinho. Com ele, regressou a morte. Uma vez mais.

Recebi-a como se recebem os velhos amigos: com confiança e sem temor. E ao cerrar os olhos como se fosse a primeira vez, entendi finalmente que o sono da nossa vida é, como na morte, uma suspensão da própria vida. Mas uma suspensão benigna, temporária e necessária, capaz de nos relembrar, como no amor, que a força da nossa humanidade também repousa nos momentos em que somos inocentes e vulneráveis.

João Pereira Coutinho

Lagosta suada

Que fazer com Sarkozy? Eu não sei. A França também não. Nas últimas semanas, Paris despertou com polêmica feia sobre os hábitos desportivos do presidente. Sarkozy, ou “Speedy Sarko” (para os íntimos), gosta de correr. Diariamente. As imagens são conhecidas: Sarkozy acelera pela cidade e chega ao Eliseu de camisola suada. O horror, o horror.

E a França está horrorizada. Nas televisões e nos jornais, colunistas vários perguntam se o jogging é coisa decente. Não é, dizem, não é. O jogging é uma prática tipicamente capitalista, importada dos Estados Unidos e contrária à existência de qualquer pessoa civilizada. Alain Finkielkraut, filósofo e sedentário (uma redundância, eu sei), vai mais longe e aconselha Sarkozy a caminhar, de preferência lendo Rimbaud. E o sociólogo Patrick Mignon vai ainda mais longe: só regimes totalitários elegem o corpo como princípio e fim de todas as demandas. O culto do corpo é o culto da força e da vontade.

Eu sei que os meus leitores vão abandonar este artigo com a próxima frase. Mas, por uma vez sem exemplo, eu estou com a França pensante, e não com “Speedy Sarko”. E não apenas por experiência pessoal – sim, fiz jogging uma vez na vida, a convite de amigos; no final, cortei relações com eles; até hoje. Mas eu estou com a França pensante porque o jogging, que eu abandonei à primeira, ainda não me abandonou a mim. Moro junto à praia e todos os dias, quando o sol se põe, hordas de alucinados invadem o calçadão para esticarem o corpo durante três ou quatro quilômetros de sofrimento e inutilidade. Observo tudo, de preferência sentado. O problema não é apenas estético. O problema é sobretudo ético: o jogging é uma declaração de guerra à decadência do corpo, mesmo sabendo que o corpo, no final, vai ganhar. Ou, se preferirem, perder.

Mas o caso ganha contornos particularmente deprimentes em França. Bem sei que Paris deu ao mundo o paradigma da revolução totalitária. Mas Paris deu também o “flâneur”, o ocioso caminhante, de Baudelaire a Serge Gainsbourg. Foi Baudelaire, aliás, quem melhor resumiu o espírito da “flânerie”, em peça clássica sobre o “dandy”. Para Baudelaire, o “dandy” não se define apenas por uma preocupação excessiva com o vestuário. Para o “dandy”, vestuário não é mais do que a expressão simbólica da sua mente aristocrática.

Porque o “dandy” é um aristocrata espiritual. Ele é a última expressão de heroísmo romântico numa era massificada. Como um astro que foi perdendo algum do seu brilho vital, conservando ainda um calor de fim de tarde.

E se os outros não perdem tempo em suas vidas mecânicas e utilitárias, o “dandy” perde todo o tempo do mundo. Como Beau Brummel, a quem devemos a invenção tão simples da calça e do casaco, e que demorava três horas matinais só para apertar o laço.

E se os outros correm para cumprir um dever, seja profissional ou sanitário, o “dandy” caminha. De preferência, levando uma lagosta pela trela, como Gérard de Nerval pelas ruas de Paris.

As ruas de Paris? Nem mais. A “flânerie” é uma forma respeitosa de respeitar uma cidade. E Paris é uma cidade que merece ser respeitada. Correr como um demente pelas mais perfeitas avenidas que existem, pingando suor e desinteresse pelas calçadas, é como jantar com uma bela mulher sem tirar os olhos do prato. É triste. É insultuoso. É, numa palavra, a barbárie.

Exatamente como as corridas de Sarkozy. Quem corre não perde tempo; quem não perde tempo, não contempla. E um político incapaz de olhar a Cidade, e aqueles que a habitam, será também incapaz de a entender e governar.

João Pereira Coutinho

A arte dos adolescentes

Agora recordo: uns anos atrás, nos bancos de faculdade, a turma esperava as indicações bibliográficas para o semestre. “Introdução à História da Arte”, eis o título da disciplina. E o professor, com total seriedade, informando os alunos que só havia um livro verdadeiramente obrigatório: a Bíblia. A turma ouviu o conselho e abriu a boca de espanto. A Bíblia?

Sim, a Bíblia. Sem um conhecimento do Antigo e do Novo Testamentos; mas também sem alguma intimidade com outros textos religiosos –a Vida dos Santos e mesmo os Textos Apócrifos– era inútil tentar entender a história da arte no Ocidente.

Escuso de dizer que o homem estava certo. Olhando para os últimos 17 ou 18 séculos –desde as primeiras expressões de arte paleocristã– é a figura de Cristo e a sua herança que se encontram presentes em cada quadro, escultura ou igreja ocidental. E, se esquecermos a Idade Média e a sua longa meditação artística sobre o sagrado, mesmo o Renascimento, ao procurar “resgatar” a herança greco-latina (o que implicava resgatar a figura humana que os medievais colocavam numa posição de inferioridade hierárquica face ao divino), foi sobretudo para melhor servir a história sacra.

Giotto, por exemplo, um revolucionário que operou essa transição entre a medievalidade e a era moderna ao pintar figuras sagradas como se fossem humanas (um prenúncio da revolução maior, que viria dois séculos depois com Caravaggio), não prescindiu dos textos bíblicos, ou religiosos, como se vê na Basílica de S. João de Latrão, em Roma. E sobre Caravaggio, conhecer o primeiro grande pintor barroco implica conhecer também a vocação e o martírio de S. Mateus (hoje na igreja romana de San Luigi dei Francesi), ou saber as histórias da crucificação de Pedro ou da conversão de Paulo (temas que dominam a Capela Cerasi, na igreja de Santa Maria del Popolo, também na capital italiana). O desconhecimento da religião cristã é, no essencial, o desconhecimento da identidade cultural do Ocidente. E causa maior da ignorância, da estupidez e da mediocridade que define, artisticamente falando, o nosso tempo.

Aliás, não é preciso acreditar no divino para acreditar no papel da religião na construção dessa identidade. Que o diga Camille Paglia, que em texto recente se apresenta como ateia e libertária de esquerda –e, apesar disso, defensora da necessidade de estudos religiosos nos currículos universitários das Humanidades. Uma sociedade totalmente secularizada, que despreza a religião e eleva o materialismo a um novo e único deus, só pode gerar uma arte entediante e adolescente. E, do ponto de vista histórico, falsamente rebelde: a arte “oposicional” começou com os românticos e morreu, algures, na década de 60, com o estertor pop. Bater na mesma tecla é bater em tecla gasta, repetitiva e artisticamente estéril.

Paglia tem razão. Não apenas pelo retrato atual de grande parte da arte contemporânea –um caso extremo, e bem irônico, de “rebelião como convenção”; Paglia acerta também ao atribuir aos românticos o início de uma “arte de ruptura” que terminou meio século atrás, com as paródias e as auto-paródias de Warhol e companhia.

Um ponto, porém, parece ignorado por Paglia: é que mesmo o romantismo, na sua recusa da “tradição” (a começar pela tradição neoclássica), não ignorou o que podia aprender com ela. Na pintura, e apenas na pintura, a ruptura romântica não ignorou o que podia aprender com os pré-românticos de finais do século 18, sobretudo com o (chamado) movimento dos Nazarenos, ligado a autores tão “clássicos”, e tão místicos, como Perugino.

Se a história da arte deixa uma lição aos artistas de hoje é que não existe verdadeira “novidade” sem um entendimento da “tradição”: sem esse sentido histórico que, para usar as palavras de T. S. Eliot, leva alguém a escrever (ou a pintar, ou a esculpir) como se a literatura ocidental estivesse presente no momento presente. Porque só esse entendimento permite uma verdadeira continuidade, ou uma reformulação, ou até uma ruptura com o passado.

A criação no vazio, típica de adolescentes, apenas produz grande parte da arte adolescente que ocupa os nossos museus, ou as nossas estantes privadas.

João Pereira Coutinho

Mário Cesariny



Poeta e pintor. Pertenceu ao grupo surrealista de Lisboa, desempenhando intensa actividade: intervenção em conferências, publicação de folhas volantes colectivas e individuais, organização de antologias (Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito, 1961; Surreal/Abjeccionismo, 1963; A Intervenção Surrealista, 1966; 50º Aniversário do Primeiro Manifesto Surrealista, 1974; Horta de Literatura de Cordel, antologia, 1983; etc.) Publica também traduções (Rimbaud, Artaud, etc.).

No início da sua vida como escritor e pintor esteve próximo do Neo-Realismo.

A sua poesia é irónica e contestatária das ideologias e dos pensamentos dominantes.

Portugal vai ficando mais pobre. Precisavamos dele para estilhaçar o pensamento de conveniência

Raio de Luz

Burgueses somos nós todos

ou ainda menos.

Burgueses somos nós todos

desde pequenos.

Burgueses somos nós todos

ó literatos.

Burgueses somos nós todos

ratos e gatos

Burgueses somos nós todos

por nossas mãos.

Burgueses somos nós todos

que horror irmãos.


Burgueses somos nós todos

ou ainda menos.

Burgueses somos nós todos

desde pequenos.

“Que valores para este Tempo?”

Universalidade e relatividade dos valores.

Podemos considerar o valor uma medida com que avaliamos acções ou formulamos juízos.

Há quem defenda que esta “medida” é fixa, definitiva e fechada. O que está de harmonia com essa medida é correcto; o que não está de harmonia com essa medida é incorrecto. Situam-se nesta perspectiva as teses dogmáticas, essencialistas e objectivistas do valor. Os seus defensores consideram que os valores existem a priori, não se fundamentam no homem, são transcendentais, valem por si mesmos de forma apodíctica (de um modo necessário e incondicional). Platão foi o primeiro a desenvolver a teoria essencialista dos valores. Nos finais do séc. XIX a fenomenologia dos valores de Max Scheler (1875-1928) defendeu que os valores são à priori e considerou que podem ser captados por intuição emocional. De uma forma geral, esta concepção dos valores aproxima-se das éticas da autoridade ou das convicções dogmáticas.

Surge, entretanto, as seguintes questões: poderemos orientar a nossa acção por valores rígidos ou convicções dogmáticas sem termos em conta a avaliação das consequências?!… Nas situações dilemáticas, como resolver o problema da orientação da acção?!…Quem aplica “mecanicamente” regras e valores previamente definidos, sem ter em conta as situações, outros pontos de vista, o contexto no qual se deve determinar a acção será um homem justo?!…. Convertendo os valores em absolutos, poderemos distinguir a acção justa (acção realizada de acordo com os modelos ou normas) do homem justo (o que age de harmonia com a sua consciência livre e responsável)?!…

Num ponto de vista oposto, surge a tese de que os valores configuram uma medida flexível”. O correcto ou incorrecto não está definido uma vez por todas: é preciso ter em conta o contexto da situação. Coloca a moralidade no sujeito e define um Sujeito Moral (o que age de harmonia com a sua consciência). Corresponde ás éticas humanistas e tem relação com a tese do subjectivismo ou relativismo dos valores: os valores não têm uma estrutura própria, nem existem a priori: são criações humanas ou convenções determinadas por contextos culturais. Os valores mudam, porque é o homem que os cria (subjectivismo) e é ele a medida de todos os valores (relativismo— isto é, do que convém ser valor ou não convém; consequencialismo–os valores avaliam-se pelas consequências que provocam na orientação da acção) .

Camões, num dos seus poemas, já tinha referido:

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.”

De uma forma geral, situam-se nesta perspectiva as seguintes correntes: sociologismo axiológico de Emile Durkheim (1858-1917), o culturalismo, o psicologismo moral de Sigmund Freud (1856-1939), o pragmatismo (o critério de valor é o que é útil) e o perspectivismo. O existencialismo (o homem é liberdade e tem portanto de escolher, mesmo que não escolha, e a escolha envolve sempre uma razão de bem justamente porque escolhi). Escolher é, assim, um acto de valorar. Estas correntes vão provocar o aparecimento da ética aplicada.

O relativismo axiológico levanta, entretanto, as seguintes questões:
Como justificar a criação de valores e submeter-se-lhes?
Em que valores poderemos apoiar uma definição de progresso civilizacional?
Podemos renunciar a determinados valores, como o respeito pela dignidade humana, independentemente das culturas ou circunstâncias?
Em virtude de que princípio é condenável o genocídio?

De facto, sempre a humanidade, em todas as culturas e em todas as épocas, aspirou à “justiça”, ao “bem” e ao “belo” e isso significa que há um mínimo de valores universais, muito embora sejam formulados de diferentes maneiras. Tais valores transcendem o homem individual e constituem princípios universais que fundamentam o respeito pela dignidade humana, muito embora esta não tenha sido entendida da mesma maneira em todas as épocas, nem extensiva a todo o ser humano ao longo da história da humanidade.

Actualmente, a defesa da dignidade humana vai acompanhando os problemas das dinâmicas tecnocientíficas que transformam as sociedades. Não admira, por isso, que surjam novos valores a procurar dar resposta para as questões que se prendem com a vida, o ambiente, etc. É assim que surgem os valores ligados, por exemplo, à bio-ética, à eco-ética, à relação entre privado e público, às questões da organização das empresas, à cibernética, aos problemas da liberdade, da tolerância e da justiça.

Furio Colombo

As culpas da esquerda sobre o “fim” de Israel.
Um ensaio de Furio Colombo lança o alarme: ameaçado e só, o Estado Hebraico corre o risco de ser anulado. Culpa da “falta” de memória histórica e de tê-lo atirado para as mãos da direita e a um destino de Guerra

No dia 22 de Junho, no jornal “L’Unità”, Furio Colombo, senador do centro-esquerda, escreveu um longo artigo sobre esta matéria.

Sempre me impressionaram, desagradavelmente, os aplausos que muitos judeus italianos endereçam ao centro-direita, e por uma razão muito simples.
Como sei que desta coligação fazem parte os herdeiros daquele fascismo que promulgou leis raciais e ajudou a enviar para os campos de extermínio milhares de judeus italianos; como sei que, nas últimas eleições legislativas, Berlusconi procurou a aliança de pequenos partidos declaradamente da extrema-direita, pura e dura, é-me difícil compreender o “entusiasmo” por Fini, secretário do partido “Aliança Nacional”, partido sucessor do fascismo mussoliniano, já “Movimento Social Italiano – Direita Nacional”
Embora seja considerado um bom político, convertido ao sistema democrático, na doutrina do partido que dirige, existem sempre as raízes donde provém. As massas que o elegem identificam-se numa direita perfeitamente saudosista.

Traduzo algumas partes do artigo de Fulvio Colombo que dão um exemplo do que acabo de escrever.
O articulista refere-se à “Festa Nazionale de L’Unità” de 16 / 09 / 2006 e onde apresentou o livro “A Esquerda e Israel”.
Parece que este livro não despertou muito interesse!…

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(…) “Israel pertence ao mundo e aos valores da esquerda. Sem o apoio da esquerda do mundo, Israel morre. Esta frase não agrada e seria acolhida com desprezo pela direita israelita. Mas também na Itália, também em Roma.

Recordo uma noite de verão de Julho 2006, em que nos reunimos, judeus e não judeus, diante da Sinagoga de Roma, subimos para uma espécie de palco e manifestámos o nosso desdém e tormento pelas palavras de Ahmadinejad, presidente do Irão, e que tinha lançado a palavra de ordem “eliminar Israel”. (…)

Daquela noite ficaram-me impressas três coisas.
Alguns dos oradores eram de esquerda. Nenhum, entre a multidão de Via Portico d’Ottavia: todavia, esta é a mesma rua, o mesmo lugar da busca e captura, na noite de 16 Outubro 1943, de mil pessoas – homens, mulheres, crianças, recém-nascidos, doentes – que nunca mais regressaram, embora daqui se veja, no outro lado do Tibre, a Cúpula de S. Pedro.
O aplauso maior e mais longo foi tributado a Gianfranco Fini.
Fini fez muitas coisas, na sua vida política, para merecer aquele aplauso. Porém, a sua vida política começou com Giorgio Almirante, secretário de redacção da revista “A Defesa da Raça” – apenas há uma geração!
Da multidão, alguns jovens gritaram – embora brevemente – “venceremos”.

Foi como um estonteamento, uma vibração triste que por um instante pareceu saída daquela multidão. Foi como um curto-circuito, no tempo e no espaço.
O abandono da esquerda estava a provocar uma pertinaz desforra. Manifesta-se quando os judeus de Roma se cingem a Fini. Manifesta-se quando – um a um – representantes e notáveis do aparato político de Berlusconi se passam o microfone para dizer que existe uma ligação do centro-esquerda com os extremistas islâmicos.

O desvio funciona e a gente parece feliz de bater as mãos a esses notáveis “berlusconianos”, quais símbolos da identidade e do sentido histórico de Israel.
Como um comboio que caminha sobre carris erradas, o comboio daquela noite, que poderia chamar-se “com a direita por Israel”, corria com alguns de nós dependurados da parte de fora.
Mas a esquerda andava por outras paragens a denunciar Israel e a sua guerra, imaginada como uma decisão inútil e cruel” (…)

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L’Unità era o jornal do Partido Comunista Italiano. Hoje é simplesmente um jornal de esquerda, equilibrado e com óptimos colaboradores, um dos quais é Furio Colombo – que nunca foi comunista.

Quanto à posição das esquerdas, na tragédia do Médio Oriente – até mesmo de algumas esquerdas que se dizem moderadas – o proverbial anti-americanismo desequilibra-lhes o sentido da equidade.

Gianfranco Fini ganhou os louros de hábil político. Converteu-se à doutrina moderada e pretende passar por paladino da democracia.
Será sincero, mas como em política as reviravoltas estão na ordem das coisas ou das oportunidades, confesso o meu cepticismo. Serei mais explícita: julgo-o um hábil político, sem dúvida, mas o mais perfeito camaleão da política italiana.

Nos anos 90 do século passado, Fini distinguiu-se por algumas afirmações. Transcrevo as mais elucidativas:
Ninguém pode pedir-nos a renúncia da nossa matriz fascista” – Janeiro 1990;
“Mussolini foi o maior estadista do século… Há fases nas quais a liberdade não está entre os valores proeminentes” – Junho 1994;
“… Quem foi vencido pelas armas, mas não pela Historia, está destinado a saborear o doce sabor da revindicta… Depois de quase meio século, o fascismo é idealmente vivo…”
– Maio 1992.

No governo Berlusconi, foi Ministro dos Negócios Estrangeiros: iniciou a fase de democrático convicto e um voltar página das convicções fascistas!…

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Visitou Israel e não se eximiu de exprimir juízos drásticos sobre o nazismo e fascismo, classificando-os como “o mal absoluto”.

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No seu isolamento, espero que Israel não escolha, como seus paladinos, tais personagens. Seria muito triste!

Mapas mentais

Bom dia
Um interessante tema de discussão, num mundo cada vez mais globalizado, mas no qual, talvez por isso mesmo, as diferenças culturais parecem cada vez mais agudas, é o dos choques civilizacionais e dos conflitos que estão associados às zonas onde essas civilizações se encontram.
Parece-me que, demasiadas vezes, se faz uma leitura ideológica de alguns conflitos, utilizando um mapa mental desadequado e que leva frequentemente as forças ditas de esquerda a mostrar-se tacitamente do lado de quem confronta a civilização ocidental, mesmo que os seus valores estejam nas antípodas dos que a esquerda defende.
Não é fácil compreender os conflitos balcânicos à luz dos mapas ideológicos que nos serviram para ler o mundo até à queda do imperio soviético.
Não se pode compreender o conflito israelo-árabe a essa luz, como faz alguma esquerda que arruma sucintamente os opositores em conflito em opressores ( capitalistas, sionistas, imperialistas, etc) e oprimidos ( os palestinianos), sem perceber que o que está em causa não tem nada a ver com isso, mas sim com profundas diferenças civilizacionais.
Os valores da esquerda são valores também eles forjados no cadinho da civilização ocidental. A esquerda, tal como a conhecemos, só existe em países que partilham os valores do ocidente, pelo que pôr em causa a civilização ocidental parece ser uma atitude ideologicamente suicida.
Não lhes parece que o mundo se explica melhor tomando como actores os ortodoxos, cristãos, muçulmanos, japoneses, chineses (neles se englobando todos os países que gravitam em torno da China), indianos, africanos, judeus, etc, do que o capitalismo, o socialismo e outros ismos ideológicos ?
A China, ainda com o lastro do comunismo, é na verdade um país fortememente capitalista, mas o seu carácter é sobretudo determinado pelos milenares valores confucionistas que radicam profundamente na história.
O Japão, capitalista e democrático, governa-se com um sistema que pouco tem a ver com o nosso formalismo democrático.
A Índia, capitalista e democrática, tem as castas e não interage de igual forma com o ocidente e durante muito tempo foi aliada do bloco soviético.
O facto de a Grécia ter apoiado os sérvios no conflito bósnio tem única e exclusivamente a ver com o facto de partilharem os valores ortodoxos.
Bin Laden ataca o ocidente, não por ser capitalista, ou imperialista, mas sim por questões culturais e religiosas, ou seja, civilizacionais. E também atacou os soviéticos no Afeganistão justamente pelas mesmas razões.
Não estará na altura de desdobrarmos novos mapas mentais ?

À sombra de Nietzsche


“O futuro chega com passinhos de pomba.” Esta frase de Nietzsche é a versão poética de outra de Hegel, mais próximo dele do que é costume pensar-se: “A Ideia não tem pressa.” A Ideia é aqui o Homem mesmo para si mesmo caminhando, menos para um Futuro que nunca terá a forma que lhe sonhamos que para um tempo que não voa como a flecha de Zenão, mas sobre si mesmo se enrola. Uma versão como outras da ideia nietzschiana de Eterno Retorno do mesmo. Se tanto invoco Nietzsche neste colóquio consagrado à crise dos valores, no nosso tempo – programado por Fernando Gil numa perspectiva assumidamente ocidental e não sem razão – é porque Nietzsche, o mais inactual dos pensadores deste tempo de crise cuja essência é a oposta ao seu diagnóstico, é também, sem contradição, o mais actual, o mais profético e com mais futuro à espera dele, por ter deslocado a preocupação ocidental por excelência, a da questão da Verdade, para a mais obscura, mas não menos incontornável, do Valor.

A revolução nietzschiana – só comparável à de Rousseau mas às avessas – não é uma simples denegação ou reversão dialéctica dos valores que durante mais de dois mil anos – de Sócrates a Schopenhauer – subdeterminaram a visão e a leitura ocidentais (europeias) do mundo. A sua estratégia nada tem de polémico, no sentido canónico, de confronto de razão contra razão, é oblíqua, de algum modo comparável às de Marx e de Freud, discursos de tipo médico-pedagógico destinados menos a negar a visão racionalista da realidade de que a ciência, no sentido moderno, é a expressão mais acabada, do que a pôr em evidência os pressupostos, cuidadosamente ocultados ou recalcados, do saber a si mesmo transparente visado pela Filosofia. Do seu educador Schopenhauer herdou Nietzsche a sua aversão quase visceral de um discurso e de uma visão do mundo destinado, sem dúvida, a compreendê-lo, mas sobretudo a justificá-lo, não apenas como inteligível mas como amável. Está escrito no Livro Santo do Ocidente: Deus, tendo criado o mundo contemplou-o e achou-o Bom. Não o tendo criado, “cela va de soi“, Schopenhauer não o achou nem Bom nem Mau. Viu nele apenas a manifestação de uma Vontade (sem ser vontade de ninguém) cega, onde, segundo ele, nos é impossível descortinar uma qualquer finalidade. Voltaire havia troçado de um Deus-Providência preocupado com o destino transcendente que nós nos atribuímos. O Deus de Voltaire impõem-se à exigência da compreensão do mundo como mecanismo (relojoaria divina com letra de Newton), mas nada tem com o nosso coração, não é o famoso “Deus sensível ao coração”, da pascaliana evocação, o homem como ser de pulsão e emoção, sujeito delas e não seu senhor, sensível aos “valores”, filhos da sua liberdade e misteriosamente seus guias como as estrelas nos céus para os caminheiros da mente humana a que chamamos destino. Em última análise nós não somos nada fora da esfera dos “valores” onde inscrevemos o que para nós é o único necessário por ser antes de mais a única realidade. De algum modo o “ente realíssimo” de escolástica lembrança. O Valor, na ética de Nietzsche, nem é Deus, Valor supremo, nem a esfera dos valores em função da qual não só agimos mas somos por assim dizer, por nossa vez, como dizia Nicolau de Cusa, deuses menores. Nada existe para Nietzsche, sempre na esteira de Schopenhauer, que uma Natureza, pura Vontade, em termos apenas anacrónicos, realidade inconsciente detrás da qual nada se esconde, que nós chamamos Mundo, que nos inclui, que é aquilo que parece na sua manifestação e que teria para além da sua aparência (e aparição) uma essência que seria a Verdade dela. Crer nessa Verdade-Essência, supô-la inteligível e racional, operando em vista de um fim, como aquele que não podemos deixar de conceder para os nossos próprios actos para conferir um sentido à nossa existência e imaginá-la assim valiosa, é para ele, como para Schopenhauer, pura ilusão e no vocabulário pessoal dele Mentira. De todas as nossas criações só o que chamamos Arte – e em particular a Música – exprimem a realidade dessa Ilusão como consciência dela. Mas não pertencem à esfera da Verdade, nem mesmo do Valor. Um Rembrandt não é verdadeiro nem falso ou uma sinfonia de Mozart também não tem valor no sentido que damos a esse termo. O que é valioso, se de arte se trata, é sem valor, ou o valor não se lhe pode aplicar. Fica de fora, o valor. Não permitem que a seu propósito possamos separar neles a realidade e a aparência, como o fazemos com a Realidade-Verdade do Ser. Tal como a leitura de Platão a impôs ao Ocidente criando com essa distinção a Metafísica. E subtraindo pela mesma ocasião o Mundo – desde o físico ao político – ao Caos criando a Ordem humana à semelhança da Ordem celeste dos astros incorruptíveis e eternos. Não nos desembaraçamos facilmente deste platonismo eterno. Kant em frase célebre celebrará ao mesmo tempo o céu estrelado, espécie de imagem sensível do divino por cima de nós e lei moral no interior de nós. Mas invertendo a perspectiva: é lei moral que sustenta o céu, é ela a manifestação divina que reclama Deus para se legitimar. Ou para se legitimarem uma ao Outro.

Deste segundo platonismo – mesmo às avessas – expressão de uma religião nos limites da Razão, de uma fé não menos razoável, limitando-se a si mesma nos seus sonhos naturalmente divinos, Nietzsche fez tábua rasa não opondo argumento a argumento, mas como ele o disse “a golpe de martelo”. Não discute com Deus ou a propósito de Deus, não recorre à Razão mesmo crítica, que é para ele máscara de uma só vontade de poderio, essência única da realidade – do nosso paradigma dela e não seu produto. Mata simbolicamente Deus – não como o século das Luzes do Abade Mélier a Diderot e aos materialistas Helvetius e Holbach, filósofos de uma leitura mecanicista do mundo e dos homens que miticamente colocam a Razão num altar – mas, por assim dizer, fisicamente, numa luta corpo a corpo para lhe roubar o seu excesso de realidade, a sua divindade intolerável, reclamando para si e para o homem digno desse nome, criador de valores no sentido mais radical do termo e não seu escravo mesmo se os assim chamados aparecem como positivos ou até sublimes quando para ele são apenas o álibi da nossa vida sem risco. É inútil sublinhar que a chamada filosofia de Nietzsche não só é de uma equivocidade irremediável – outros dizem paradoxal e contraditória – como objectivamente perigosa, epíteto que naturalmente ele assumiu. Viver perigosamente tornou-se uma das exigências éticas (da sua nova ética) nietzschiana. E isto foi lido com entusiasmo e inspirou vocações de gente habitualmente sentada, para tentar aventuras dignas de um Harrison Ford da Arca Perdida. Decerto Nietzsche alegorizou o seu combate – mais que mortal pois comportou o naufrágio da sua própria Razão – como aventura no interior do Labirinto e como nova espécie de marcha no coração das trevas para combater o Minotauro de uma Verdade como duplo de Deus, o que para ele era uma redobrada Ilusão ou uma única e invencível Mentira. A sua luta por uma transmutação de todos os valores na sua linguagem – o seu combate pelas realidades contra as ilusões – foi antes de mais uma luta contra as aparências de valores que serviam ao mesmo tempo como inscrição e justificação da vida mais alta e bastava isso para o colocar numa situação sem precedentes, cavaleiros de um mau combate, niilistas no sentido trivial do termo, vulgarmente, “sem fé nem lei” e numa perspectiva mitológica que ele mesmo assumiu, como um verdadeiro AntiCristo. Quer dizer, em carne e osso, o paradigma do blasfemo – se invocarmos o quadro das atitudes religiosas intoleráveis, reprováveis ou dementes – quando a sua única obsessão, essa sim, heróica, foi a de recusar o que era para ele a forma mesma do niilismo, que não é uma simples constatação de que a ordem dos “valores” qualquer que ela seja, e em particular aquela de que os “valores cristãos” são exemplo, não tem justificação alguma, nem numa perspectiva de Verdade, nem de evidência por assim dizer irrecusável como imperativos de uma acção exemplar, mas do simples facto de a sua essência ser negação do valor mesmo da vida ou melhor de negação activa dela. O “cogito” nietzschiano, o único fundamento do seu pensamento em função do qual todas as realidades devem ser julgadas. Nietzsche não se importa, ou na sua perspectiva isso não tem sentido, em demonstrar que a ideia de Deus é, em si mesma, contraditória, como um materialista clássico o podia fazer, ou que é virtual e exigida pela “moralidade como em Kant”, ou mesmo simples reflexo da nossa nulidade ontológica invertida (a nossa impotência transfigurada), como em Feuerbach, mas a manifestação mesma da nossa inexistência. “Se Deus existisse como toleraria eu ser não-Deus?” A legitimação mesma da Terra, o assentimento, não a uma Criação (e por conseguinte a um Criador nosso Pai e nosso Senhor) mas à realidade-Mundo como puro fenómeno que não tem mais finalidade nem sentido que manifestar-se, que não diz com o Deus bíblico “eu sou o que sou” mas só recebe “voz” na nossa voz – que não é a de Deus – mas a de um eco de si mesma como palavra-Mundo que não tem mais realidade que a Linguagem que é a única casa do Ser que conhecemos – é para Nietzsche o pressuposto transcendental concreto, não uma fantasmagoria, para que o que chamamos “valores” sejam as mil maneiras de reiterar o nosso “sim” à existência, em suma, de aceitar que os “alimentos terrestres” de que vivemos são os únicos realmente celestes. O seu consumo não nos torna deuses. Nem sequer “homens”. Nós não somos os macacos de Deus depois de o ter morto para nos crer realmente existentes e não mero reflexo do pensamento e de uma vontade divina que já nos antecipava desde sempre como meros reflexos da sua Luz infinita. Nós somos grãos de uma solitude infinita à volta da qual gravita o verdadeiro sol de Deus e as suas constelações, os Valores que não existem em si como as ideias platónicas, e que Nietzsche pensava que eram menos a máscara que a expressão da pura vontade de poderio. Por sua vez e contrariamente à vulgata nietzschiana, esta misteriosa “vontade de poderio” não é a óbvia capacidade de impor a “nossa” vontade à vontade alheia, para “além do bem e do mal” – como na versão “darwinista” de Nietzsche o podia parecer – mas antes de tudo e além de tudo, aquilo que Nietzsche entendia por imperativo de transcensão de si, de que comporta a negação da nossa própria aparência, o que supõe não a complacência para o que julgamos ser como homens que cumpriram o seu dever, como servos ou sacerdotes dos “verdadeiros valores”, de algum modo deuses para si mesmos, mas a consciência aguda e dolorosa de os ter falhado, tê-los idolatrado, considerados como “coisas em si” ou o conjunto deles como uma nova “Coisa em si”, em suma, uma nova figura de Deus.

O radicalismo com que Nietzsche combateu a ideia de Verdade – ou melhor a ideia de possuir a Verdade, tornava inevitável que a sua recusa não fosse menor em considerar os Valores numa perspectiva “idolátrica” como seus passivos suportes ou consumidores. Mais do que as “verdades”, os chamados valores são os nossos valores e os nossos valores, em última análise, além do carácter de polaridade que os caracteriza (um valor vive do que nega e é inseparável dele – o Bem do Mal, o Belo do Feio, o Justo do Injusto) são sustentados pela nossa vontade de os afirmar ou negar, afirmando através deles o sentido da vida, não em função dum fora dela, dum céu para ele imaginário, mas de vontade de, de capacidade, do desejo de os encarnar, efectivamente, como tais. Nós podemos compensar com eles o deserto em que voluntariamente nos instalámos e Nietzsche nos instalou com a “morte de Deus” e com ela a nossa morte como Sujeitos susceptíveis de conferir à ideia de Verdade e de Valor essa evidência e esse esplendor, na Luz da ideia de Deus e mais ainda a convicção da sua Presença quando ela era (ou é) vivida como fundamento da nossa própria existência e garantia de um sentido para ela.

Foi para recuperar um sentido unicamente humano para o nosso destino – a propósito, pode ser ou louco ou contestável -que Nietzsche denunciou as fricções antigas, as da razão grega e a tábua dos valores cristãos como caluniadoras da verdade da Terra ou da Terra como Verdade. Não se pode dizer que cem anos mais tarde a nossa Civilização e a nossa Cultura, que ele quis purificar da ilusão, não para lhe retirar uma verdade consoladora como a antiga, tenham restaurado “os verdadeiros valores” que deviam converter o antigo homem iluso num “mais que homem” capaz de olhar a realidade em face, inundado de uma alegria e de uma felicidade adultas, libertas, pensava ele, da sombra de Deus. Dioniso deus dançante e cristão não conduz o baile do mundo. O mundo convertido num espectáculo permanente dança sozinho. A famosa “morte de Deus” que devia ter não apenas abalado mas comovido o mundo, como catástrofe sem igual na História dos Homens, de tragédia que foi que era já para Lutero e de paixão para Nietzsche, tornou-se um “cliché” cultural e é hoje vivida com indiferença. Descendo da sua montanha Zaratustra encontrou um eremita que continuava a honrar Deus com a sua solidão e com o seu fervor. “É possível que este velho santo na sua floresta não tenha ainda ouvido que Deus morreu?”

Entre nós alguém viveu essa morte de Deus com uma seriedade infinita. Chamou-se Pessoa. A desertificação deixada na alma moderna por essa morte atingiu-o como uma revelação e tornou-o incapaz de reconstituir em si o Dioniso que como Nietzsche também era. Na ordem da cultura – embora exterior – é difícil encontrar alguém que tivesse glosado essa morte com tanta paixão e tanta violência. A sua Obra é, toda ela, luto de Deus. Podia ser tido como o exemplo mesmo da “crise de valores” que é o tema que aqui nos reuniu. Temo que seja só a excepção, não a regra, mesmo se ele também já foi integrado, como dizia Kafka, ao ritual dos leopardos, dos valores antigos que continuam a assolar o tempo. A pior “crise de valores” é a que se não vê. Ou se vê e nos deixa indiferentes. Entre tantas virtudes o pensamento-acto de Nietzsche não permite a indiferença em nós, que temos de nos responsabilizar pelo sol de Deus ou consumir com a sua morte e viver a sua ausência. E este é o desafio que Nietzsche deixou entre nós, não restaurando valores que, por sua vez, eram para nós uma sombra de uma outra ilusão, provavelmente pior do que a de Deus, que era uma ilusão que fazia viver, ou que faz viver, mas deixando-nos unicamente em face de nós mesmos, como responsáveis pela nomeação daquilo que, de uma maneira vulgar, chamamos valores.

E essa é a crise. É que nós não temos critério para distinguir o que é verdadeiramente valor do que não é. E esta é a crise, que não é uma crise por acaso, não é uma crise da cultura nem da civilização, mas é uma crise do senso, daquilo que nós somos como seres que pensam, sofrem, morrem sem saber se morrem, pensam e sentem e isso tem um sentido, ou não; a nós cabe decidir, é um problema de aposta, uma outra espécie de aposta pascaliana, aposta que nos faz viver ou morrer, somos nós, não os pais dos valores, mas os criadores dos valores ou, por não os sermos capazes de os criar, as suas vítimas.

Janis Joplin

  • As pessoas acreditam praticamente em tudo, desde que não seja verdade. E fazem bem. Já que a verdade é desinteressante, aborrecida, perturba o bom andamento das coisas e ensombra a vida. Pelo contrário, a mentira move multidões, empolga a opinião pública, anima a política, abastece os media, favorece os negócios.
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