Poder: “O que é tem muita força”

Poder: “O que é tem muita força”

[Pacheco Pereira, Público, 19-05-2007] 

 

Na candidatura de Costa já se pode perceber como funciona essa enorme pressão do poder, típica das candidaturas que já “ganharam antes de ganhar”.
Nós pensamos muitas vezes apenas nos partidos, mas, em democracia, mais importante do que os partidos é a dualidade poder-oposição ou, melhor ainda, a existência ou não de um tónus crítico do debate público que não seja afectado pela presença obsessiva do poder. Liberdade não só no papel, mas também nas cabeças. E essa não só falta, como está a ficar cada mais rarefeita.
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O poder reforça-se todos os dias aos nossos olhos de mil e uma maneiras: com a intromissão crescente do Estado na regulação da vida privada; no crescimento da vigilância policial, seja a pretexto da pedofilia, seja da fuga ao fisco; com a concentração no governo de poderes securitários sem efectivo controlo; pela poderosa capacidade de tecnologias para diminuírem a liberdade individual e a sua disseminação; pelo crescente controlo governamental dos órgãos de comunicação social; pela linguagem tecnocrática da “solução única”, “consensual”; pela característica das sociedades mediáticas para valorizarem o espectáculo do poder e da força. Resistir a tudo isto em Portugal é muito difícil, pela conjugação de dois factores que se alimentam mutuamente: a enorme dependência do Estado, ou seja, de decisões governativas, de todos os sectores de actividade e a fragilidade da sociedade civil para constituir uma reserva de liberdade individual.
Tudo isto pode nem sempre se reconhecer no dia-a-dia, mas sente-se. Não é apenas uma questão de leis e de códigos, mas do “ar que se respira”. A nossa História mostra como essa liberdade das cabeças nem sempre coincide com as condições da liberdade civil, nem com os regimes políticos. Veja-se, por exemplo, como na segunda metade do século XIX se produziram obras como as Farpas, ou a correspondência ficcional de Fradique Mendes, ou os jornais de “paródia” de Rafael Bordalo Pinheiro. Quando se compara o ar de liberdade de todas estas obras, percebe-se que ele era muito mais pujante nos anos finais do constitucionalismo monárquico do que nos anos da República. A República podia ter acabado com a “anomalia” da monarquia, mas vivia um clima mais estéril no que diz respeito à vitalidade da crítica social e política. Quando o regime da ditadura introduziu a sua mais formidável arma de castração pública, a censura, encontrou um ambiente favorável, uma liberdade já estiolada.
Não é história do passado, é dos nossos dias, muito útil de lembrar no presente deste Governo socialista. Todos os dias se percebe como, para quem critica com independência, o ar se torna mais denso, a claustrofobia mais acentuada. A candidatura de António Costa em Lisboa transportou para a luta eleitoral de Lisboa o mesmo adensamento do ar que o Governo Sócrates tem trazido para o país e que teve (e tem) um momento exemplar em toda esta história do diploma do primeiro-ministro. Na candidatura de Costa já se pode perceber como funciona essa enorme pressão do poder, típica das candidaturas que já “ganharam antes de ganhar”.
Mais do que divisões políticas e partidárias, que também têm um papel, é a força do poder que se exprime nua e crua na facilidade com que se aceita o facto consumado, como se torna “consensual” esse facto consumado. Não se conte para contrariar esta realidade com a comunicação social, que, salvo honrosas excepções, é particularmente sensível ao exercício do poder, a que dá sempre caução, nem que seja pelo amesquinhamento de quem o não tem e pela protecção que dá a quem o tem.
Percebe-se melhor o que eu digo, se se analisarem as coisas de outro modo, por aquilo que o poder é capaz de sugar, de retirar da sociedade, do debate público, da pluralidade, para reforçar a sua voz crescentemente única. É a esse poder que José Miguel Júdice e Saldanha Sanches estão a dar caução, não a um candidato com que especialmente concordem e que apoiem pelos riscos que corre de não ser eleito. Eu compreendo que num momento de sobressalto cívico, de risco de um projecto que se considera bom para o país, se passe por cima de fidelidades partidárias ou outras, a favor do compromisso. O compromisso tem sentido ético e social. Mas a adesão ao poder quando este parece seguro e forte e sem risco é, só e apenas, adesão ao poder.
Compreende-se que Júdice e Saldanha Sanches considerem Costa o melhor candidato, mas para o apoiarem bastava votarem nele. Oferecendo os seus nomes para a propaganda política neste momento, nesta conjuntura pública, neste país, contribuem para empobrecer o tónus crítico da sociedade face a um poder que se comporta de forma cada vez mais hegemónica e mais arrogante. Pode parecer bizarro, no ambiente partidarizado que se vive, mas, tendo em conta as suas posições do passado, parecer-me-ia que era a construção de uma oposição forte que os devia preocupar para assegurarem a qualidade do poder, e não juntarem-se a um carro que não precisa deles a não ser para efeitos de propaganda e de reforço do seu próprio poder. Ao aceitarem juntar-se à candidatura do poder, ao vencedor que todos dão como garantido, não contribuem para as causas públicas que sempre apareceram a defender. “O que é tem muita força” e este argumento hegeliano fica ainda mais reforçado pela passagem de críticos “do que é” para o “é”.
Veja-se a escolha de Saldanha Sanches. É um acto simbólico, a escolha de uma das mais críticas vozes dos mecanismos de financiamento partidário para responsável das finanças da campanha, mas é um acto igualmente enganador sobre a realidade em causa. Saldanha Sanches imediatamente disse que aceitava, porque pensava que assim era possível garantir que a campanha era feita com “dinheiro limpo”, a que dava a sua caução pessoal. Mas, ao apoiar a campanha do PS, porque é o PS o partido em causa nestas eleições, ele está a caucionar o mesmo partido que está envolvido hoje, não ontem mas hoje, numa história obscura de financiamento “sujo” da sua campanha eleitoral na emigração no Brasil que não só se recusa a explicar, como justifica em termos inaceitáveis como fez José Lello, sem que o partido disso se demarque. Este “é” sairá da campanha a que Saldanha Sanches dá a sua caução, ainda mais “é”.
Mais: Saldanha Sanches tem a obrigação de saber que esta campanha é tão rápida como atípica, é feita com tanta certeza de ganhar por parte do PS que não há qualquer pressão sobre os interesses vitais do PS que levassem o seu aparelho a ter grandes tentações de envolverem “dinheiro sujo” na campanha. Talvez Saldanha Sanches tivesse podido aceitar esta função, colocando como condição o controlo da campanha do PS para as próximas legislativas, onde pelo menos a maioria absoluta pode estar em jogo. Teria sido mais eficaz para combater o “dinheiro sujo”.
É que a caução do nome numa questão “forte” implica muita responsabilidade. Saldanha Sanches sabe muito bem que a presença de “dinheiro sujo” nas actividades autárquicas não se limita aos financiamentos directos das campanhas eleitorais, mas paira sobre as múltiplas decisões autárquicas sobre urbanizações, licenças de construção, permutas, terrenos, o dia-a-dia de uma gestão municipal. Ora ele também tem obrigação de saber que o PS na Câmara de Lisboa votou com o PSD em todas as decisões fundamentais nesta matéria, mesmo naquelas que estão sujeitas a investigação judicial. Sabe que a Bragaparques, a empresa-nemesis envolvida na queda da gestão do PSD na câmara, lá chegou pela mão da anterior gestão socialista. Será que António Costa se demarca deste passado? Se o fizer com clareza, a presença de Saldanha Sanches ganha um outro sentido; senão, é mais um acto de propaganda hábil de Costa, mais um acto de reforço do seu poder e do poder dos socialistas.
Eu sou amigo de Júdice e de Saldanha Sanches, por isso não é fácil escrever o que escrevo. Mas acho que fizeram mal. A oposição partidária institucional pode cometer mil e um erros, mas esta questão está para lá das fragilidades da oposição, a maior das quais é certamente a convicção de que, se tivesse ela o poder, faria o mesmo. Mas mais do que o estado da oposição institucional, da debilidade do Parlamento para ser o que devia ser, preocupa-me o facto de estas serem escolhas do poder, pelo poder, reforçando o poder, numa sociedade já se si muito frágil. Elas dão um sinal negativo a quem queira manter o debate público vivo e crítico, quando mais ele é necessário.

A narrativa neoliberal sobre a globalização

 

A realidade tem vindo a desmentir as teorias do fim da História

[André Freire, Professor de Ciência Política (ISCTE), Publico.pt, 22-06-2007] 

 

Terminou mais uma cimeira do G8, onde se reuniram os líderes das oito maiores potências mundiais. Fora do recinto, reuniram-se cerca de 100 mil manifestantes que se batem contra a presente globalização e por formas de globalização alternativas. Na versão actualizada de um livro (Globalism: Market Ideology Meets Terrorism) que, em 2003, recebeu um prémio da Associação Americana de Ciência Política, Manfred Steger faz uma distinção entre “Globalização” e “Globalismo”.

A primeira refere-se aos processos sociais associados à intensificação da interdependência global dos vários países, economias, culturas, etc., e que têm sido descritos pelos estudiosos de diferentes formas. O “globalismo” refere-se à narrativa ideológica sobre a globalização que associa tais processos aos valores e conteúdos do neoliberalismo.
A narrativa neoliberal sobre a globalização assenta em seis grandes teses centrais, que o autor ilustra com abundante recolha de material empírico. Primeira tese: a globalização é sinónimo de liberalização e integração global dos mercados. Por exemplo, na Business Week (13/12/1999) argumentava-se assim: “Globalização é sobre o triunfo dos mercados sobre os governos. (…) A verdade é que o peso do Estado na economia tem declinado praticamente em todo o lado.” Por um lado, a narrativa neoliberal da globalização rejeita modos alternativos de regular a economia, o que pode ser concebido como uma certa deriva totalitária. Por outro lado, ao contrário do que sugere a metáfora da “mão invisível”, a liberalização mundial dos mercados tem dependido muito mais da engenharia política do que da acção espontânea das forças do mercado – recorde-se, nomeadamente, a aplicação do “consenso de Washington”. Além disso, tal visão escamoteia o carácter multidimensional (isto é, não apenas económico) da globalização.
Segundo, tal narrativa apresenta a globalização como “inevitável” e “irreversível”, dependente da integração mundial dos mercados e da evolução tecnológica (por exemplo, Thomas Friedmann, The Lexus and the Olive Tree, p. 407). Para quem passou décadas a criticar o marxismo pelo seu determinismo económico, como sempre fizeram (e bem!) os liberais, é preciso sublinhar que estamos perante uma visão claramente determinística da história. E que encerra uma total subversão da democracia: os governos, os partidos, os movimentos sociais não têm outra escolha senão ajustar-se ao processo “inevitável” da globalização. Daqui decorrem as tentativas de neutralizar as forças alter-globalização, bem como os esforços para despolitizar o discurso sobre o fenómeno. Além disso, justificam-se assim as medidas de austeridade conduzidas pelos governos. Finalmente, tal tese envolve uma visão ocidentalocêntrica (tipo Fukuyama e o “fim da História”): as nações mais avançadas no processo da globalização neoliberal como que lideram a evolução da humanidade…
A terceira tese é a de que ninguém pilota a globalização (por exemplo, Thomas Friedmann, Idem, pp. 112-113): No one is in charge… Esta é, porém, uma ideia falsa: basta relembrar o papel das grandes potências, com os EUA e o Reino Unido à cabeça, bem como das organizações internacionais (FMI, Banco Mundial, OMC, etc.) na implementação da globalização neoliberal. O programa neoliberal associado ao “consenso de Washington”, que foi elaborado por um conselheiro do FMI nos anos 1970, tem orientado muitos governantes do G8 e o FMI, nomeadamente quando esta organização exige a aplicação de tal programa como moeda de troca para a concessão de empréstimos aos países em dificuldades.

A quarta tese é a de que a globalização beneficia toda a gente. A expansão do comércio mundial será uma forma adequada de aumentar a riqueza e o bem-estar dos seres humanos à escala mundial. Terá até beneficiado bastantes pobres de países do Sul. Porém, os resultados da globalização tal qual tem vindo a ser conduzida estão à vista: taxas de crescimento do PIB inferiores às do período do capitalismo regulado (“30 anos gloriosos”); aumento das desigualdades à escala mundial, quer no seio dos países, quer entre países (Relatório da ONU no PÚBLICO, 15/1/06); face aos anos 1960, nas grandes potências mundiais, os “salários recebem (hoje) a menor parcela do PIB de sempre” (DN, 28/11/06). Ou seja, a globalização tem beneficiado sobretudo as grandes empresas transnacionais e o capital financeiro e bastante menos as populações, sobretudo as dos países mais desenvolvidos. Tanto assim é que o próprio FMI (PÚBLICO, 6/4/07) e certos especialistas (DN, 25/5/07) alertam para os riscos que o processo corre, a continuar nestes termos. Sarsfield Cabral (PÚBLICO, 21/5/07) alertava para uma possível “revolta da classe média” e recomendava “subsídios aos salários baixos”.
Associada às ideias sobre o fim da história, a quinta tese associa a globalização à difusão da democracia à escala mundial. Liberdade, mercados livres, comércio livre e democracia são apresentados na prática como sinónimos. A sexta tese, isto é, a globalização requer a “guerra ao terrorismo”, aponta para a necessidade de se pôr o complexo militar-
-industrial ao serviço da globalização. A realidade tem vindo a desmentir as teorias do fim da História e o tremendo fracasso da invasão do Iraque veio evidenciar que a democracia dificilmente se impõe com a força das armas.
É precisamente porque a globalização tem tido uma clara pilotagem política ao nível mundial que não posso concordar com Sarsfield Cabral (PÚBLICO, 11/6/07), quando este acusava os manifestantes alter-globalização de se terem dirigido a “alvos errados”. Mais, tendo em conta os maus resultados da globalização neoliberal, também me parece errado reduzir as correntes alter-globalização a mero “folclore”: porventura mais do que nunca, torna-se necessário inflectir a globalização tal como a temos conhecido.

Contra o medo, liberdade

Contra o medo, liberdade

[Manuel Alegre, 23-07-2007] 

 

Nasci e cresci num Portugal onde vigorava o medo. Contra eles lutei a vida inteira. Não posso ficar calado perante alguns casos ultimamente vindos a público. Casos pontuais, dir-se-á. Mas que têm em comum a delação e a confusão entre lealdade e subserviência. Casos pontuais que, entretanto, começam a repetir-se. Não por acaso ou coincidência. Mas porque há um clima propício a comportamentos com raízes profundas na nossa história, desde os esbirros do Santo Ofício até aos bufos da Pide. Casos pontuais em si mesmos inquietantes. E em que é tão condenável a denúncia como a conivência perante ela.

Não vivemos em ditadura, nem sequer é legítimo falar de deriva autoritária. As instituições democráticas funcionam. Então porquê a sensação de que nem sempre convém dizer o que se pensa? Porquê o medo? De quem e de quê? Talvez os fantasmas estejam na própria sociedade e sejam fruto da inexistência de uma cultura de liberdade individual.
Sottomayor Cardia escreveu, ainda estudante, que “só é livre o homem que liberta”. Quem se cala perante a delação e o abuso está a inculcar o medo. Está a mutilar a sua liberdade e a ameaçar a liberdade dos outros. Ora isso é o que nunca pode acontecer em democracia. E muito menos num partido como o PS, que sempre foi um partido de homens e mulheres livres, “o partido sem medo”, como era designado em 1975. Um partido que nasceu na luta contra a ditadura e que, depois do 25 de Abril, não permitiu que os perseguidos se transformassem em perseguidores, mostrando ao mundo que era possível passar de uma ditadura para a democracia sem cair noutra ditadura de sinal contrário.
Na campanha do penúltimo congresso socialista, em 2004, eu disse que havia medo. Medo de falar e de tomar livremente posição. Um medo resultante da dependência e de uma forma de vida partidária reduzida a seguir os vencedores (nacionais ou locais) para assim conquistar ou não perder posições (ou empregos). Medo de pensar pela própria cabeça, medo de discordar, medo de não ser completamente alinhado. No PS sempre houve sensibilidades, contestatários, críticos, pessoas que não tinham medo de dizer o que pensam e de ser contra quando entendiam que deviam ser contra. Aliás, os debates desse congresso, entre Sócrates, eu próprio e João Soares, projectaram o PS para fora de si mesmo e contribuíram em parte para a vitória alcançada nas legislativas. Mas parece que foram o canto do cisne. Ora o PS não pode auto-amordaçar-se, porque isso seria o mesmo que estrangular a sua própria alma.
Há, é claro, o álibi do governo e da necessidade de reduzir o défice para respeitar os compromissos assumidos com Bruxelas. O governo é condicionado a aplicar medidas decorrentes de uma Constituição económica europeia não escrita, que obriga os governos a atacar o seu próprio modelo social, reduzindo os serviços públicos, sobrecarregando os trabalhadores e as classes médias, que são pilares da democracia, impondo a desregulação e a flexigurança e agravando o desemprego, a precariedade e as desigualdades. Não necessariamente por maldade do governo. Mas porque a isso obriga o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) conjugado com as Grandes Orientações de Política Económica. Sugeri, em tempos, que se deveria aproveitar a presidência da União Europeia para lançar o debate sobre a necessidade de rever o PEC. O Presidente Sarkozy tomou a iniciativa de o fazer. Gostei de ouvir Sócrates a manifestar-se contra o pensamento único. Mas é este que condiciona e espartilha em grande parte a acção do seu governo.
Não vou demorar-me sobre a progressiva destruição do Serviço Nacional de Saúde, com, entre outras coisas, as taxas moderadoras sobre cirurgias e internamentos. Nem sobre o encerramento de serviços que agrava a desertificação do interior e a qualidade de vida das pessoas. Nem sobre a proposta de lei relativa ao regime do vínculo da Administração Pública, que reduz as funções do Estado à segurança, à autoridade e às relações internacionais, incluindo missões militares, secundarizando a dimensão administrativa dos direitos sociais. Nem sobre controversas alterações ao estatuto dos jornalistas em que têm sido especialmente contestadas a crescente desprotecção das fontes, com o que tal representa de risco para a liberdade de imprensa, assim como a intromissão indevida de personalidades e entidades na respectiva esfera deontológica. Nem sobre o cruzamento de dados relativos aos funcionários públicos, precedente grave que pode estender-se a outros sectores da sociedade. Nem ainda sobre a tendência privatizadora que, ao contrário do Tratado de Roma, onde se prevê a coexistência entre o público, o privado e o social, está a atingir todos os sectores estratégicos, incluindo a Rede Eléctrica Nacional, as Águas de Portugal e o próprio ensino superior, cujo novo regime jurídico, apesar das alterações introduzidas no parlamento, suscita muitas dúvidas, nomeadamente no que respeita ao princípio da autonomia universitária.
Todas estas questões, como muitas outras, são susceptíveis de ser discutidas e abordadas de diferentes pontos de vista. Não pretendo ser detentor da verdade. Mas penso que falta uma estratégia que dê um sentido de futuro e de esperança a medidas, algumas das quais tão polémicas, que estão a afectar tanta gente ao mesmo tempo.
Há também o álibi da presidência da União Europeia. Até agora, concordo com a acção do governo. A cimeira com o Brasil e a eventual realização da cimeira com África vieram demonstrar que Portugal, pela História e pela língua, pode ter um papel muito superior ao do seu peso demográfico. Os países não se medem aos palmos. E ao contrário do que alguém disse, devemos orgulhar-nos de que venha a ser Portugal, em vez da Alemanha, a concluir o futuro Tratado europeu. Parafraseando um biógrafo de Churchill, a presidência portuguesa, na cimeira com o Brasil, recrutou a língua portuguesa para a frente da acção política. Merece o nosso aplauso.
O que não merece palmas é um certo estilo parecido com o que o PS criticou noutras maiorias. Nem a capacidade de decisão erigida num fim em si mesma, quase como uma ideologia. A tradição governamentalista continua a imperar em Portugal. Quando um partido vai para o governo, este passa a mandar no partido que, pouco a pouco, deixa de ter e manifestar opiniões próprias. A crítica é olhada com suspeita, o seguidismo transformado em virtude.
Admito que a porta é estreita e que, nas circunstâncias actuais, as alternativas não são fáceis. Mas há uma questão em relação à qual o PS jamais poderá tergiversar: essa questão é a liberdade. E quem diz liberdade diz liberdades. Liberdade de informação, liberdade de expressão, liberdade de crítica, liberdade que, segundo um clássico, é sempre a liberdade de pensar de maneira diferente. Qualquer deriva nesta matéria seria para o PS um verdadeiro suicídio.
António Sérgio, que é uma das fontes do socialismo português, prezava o seu “querido talvez” por oposição ao espírito dogmático. E Antero de Quental chamava-nos a atenção para estarmos sempre alerta em relação a nós próprios, porque “mesmo quando nos julgamos muito progressistas, trazemos dentro de nós um fanático e um beato.” Temo que actualmente pouco ou nada se saiba destas e doutras referências.
Não se pode esquecer também a responsabilidade de um poder mediático que orienta a agenda política para o culto dos líderes, o estereotipo e o espectáculo, em detrimento do debate de ideias, da promoção do espírito crítico e da pedagogia democrática. Tenho por vezes a impressão de que certos políticos e certos jornalistas vivem num país virtual, sem povo, sem história nem memória.
Não tenho qualquer questão pessoal com José Sócrates, de quem muitas vezes discordo mas em quem aprecio o gosto pela intervenção política. O que ponho em causa é a redução da política à sua pessoa. Responsabilidade dele? A verdade é que não se perfilam, por enquanto, nenhumas alternativas à sua liderança. Nem dentro do PS nem, muito menos, no PSD. Ora isto não é bom para o próprio Sócrates, para o PS e para a democracia. Porque é em situações destas que aparecem os que tendem a ser mais papistas que o papa. E sobretudo os que se calam, os que de repente desatam a espiar-se uns aos outros e os que por temor, veneração e respeitinho fomentam o seguidismo e o medo.
Sei, por experiência própria, que não é fácil mudar um partido por dentro. Mas também sei que, assim como, em certos momentos, como fez o PS no verão quente de 75, um partido pode mobilizar a opinião pública para combates decisivos, também pode suceder, em outras circunstâncias, como nas presidenciais de 2006 e, agora, em Lisboa, que os cidadãos, pela abstenção ou pelo voto, punam e corrijam os desvios e o afunilamento dos partidos políticos. Há mais vida para além das lógicas de aparelho. Se os principais partidos não vão ao encontro da vida, pode muito bem acontecer que a recomposição do sistema se faça pelo voto dos cidadãos. Tanto no sentido positivo como negativo, se tal ocorrer em torno de uma qualquer deriva populista. Há sempre esse risco. Os principais inimigos dos partidos políticos são aqueles que, dentro deles, promovem o seu fechamento e impedem a mudança e a abertura.
Por isso, como em tempo de outros temores escreveu Mário Cesariny: “Entre nós e as palavras, o nosso dever falar.” Agora e sempre contra o medo, pela liberdade.

  • As pessoas acreditam praticamente em tudo, desde que não seja verdade. E fazem bem. Já que a verdade é desinteressante, aborrecida, perturba o bom andamento das coisas e ensombra a vida. Pelo contrário, a mentira move multidões, empolga a opinião pública, anima a política, abastece os media, favorece os negócios.
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