Janis Joplin

LEONARD COHEN – Closing Time

LEONARD COHEN

Waiting For The Miracle

ANTÓNIO LOBO ANTUNES

CITAÇÕES

recolhidas dos livros, entrevistas e declarações do escritor (ordem cronológica)

Lamento que pessoas com talento tenham de trabalhar noutra profissão e só possam escrever à noite e aos fins-de-semana.

fonte: Courrier Internacional, 01.2007

 

O que acontece, porém, é que toda essa história das definições de géneros cada vez me interessa menos. Quando se começa um livro, é isso que se quer fazer, um livro, um livro total que tenha tudo, poesia, prosa, tudo: a vida.

fonte: Courrier Internacional, 01.2007

 

É preciso viver, viver como homem comum entre homens comuns. Só um homem comum pode fazer grandes coisas.

fonte: Courrier Internacional, 01.2007

 

Como quando estamos em bicos de pés à procura de coisas em cima dos armários, os livros andam por aí à espera que alguém os escreva.

fonte: Jornal de Letras, 25.10.2006

 

Só podes começar um livro quando tens a certeza que não vais ser capaz, porque só então escrever se torna uma luta com o material, e a tua vida se vai estreitando porque estás de tal modo habitado pelo livro, numa relação simbiótica, que formas corpo com ele.

fonte: Jornal de Letras, 25.10.2006

 

Não podes escrever e fazeres outra coisa. Não se podem fazer bons  livros a ser-se jornalista, médico ou o que quer que seja.

fonte: Jornal de Letras, 25.10.2006

 

Não vale a pena escreveres se não for para seres o melhor.

fonte: Jornal de Letras, 25.10.2006

 

Tenho de os ler [aos livros que gosta] duas, três, quatro vezes; há sempre muitas coisas que perdemos na primeira leitura.

fonte: Jornal de Letras, 25.10.2006

 

Só ficas adulto depois do teu pai morrer, porque deixou de existir a última coisa que existia entre ti e a morte.

fonte: Jornal de Letras, 25.10.2006

 

Cada vez gosto mais de ser português e cada vez tenho mais orgulho no meu país. É-me insuportável ouvir dizer «somos um país pequeno e periférico». Para mim Portugal é central e muito grande.

fonte: Jornal de Letras, 25.10.2006

 

Queria que cada página fosse um espelho [para o leitor].

fonte: entrevista na RTP 2, programa Por outro lado, 04.04.2006

 

O que eu queria era pôr a vida toda entre as capas de um livro.

fonte: entrevista na RTP 2, programa Por outro lado, 04.04.2006

 

Num livro mau, a pessoa escreve aquilo que quer escrever. Num livro bom a pessoa escreve aquilo que o livro quer que seja escrito.

fonte: entrevista na RTP 2, programa Por outro lado, 04.04.2006

 

Como aquilo que aconteceu ao Camões: o que é que eu quero?, é dar trabalho para quinhentos anos aos críticos.

fonte: entrevista na RTP 2, programa Por outro lado, 04.04.2006

 

Eu não sei o que é que é light, sei que é light em relação a cigarros. Há literatura, e não há literatura. Pois a literatura não é isso, é uma coisa nobre, a literatura é o que faz o Dostoievski.

fonte: entrevista na RTP 2, programa Por outro lado, 04.04.2006

 

Eu duvido que um leitor de maus livros vá ler livros bons.

fonte: entrevista na RTP 2, programa Por outro lado, 04.04.2006

 

Eu pergunto-me se é possível entrevistar um escritor. Acho que não é porque ele é muita gente. E é muito difícil apanhar essa multidão toda.

fonte: entrevista na RTP 2, programa Por outro lado, 04.04.2006

 

Todos nós somos muitos.

fonte: entrevista na RTP 2, programa Por outro lado, 04.04.2006

 

Em geral, as entrevistas são piores do que as pessoas.

fonte: entrevista na RTP 2, programa Por outro lado, 04.04.2006

 

É próprio do homem não viver livre em liberdade, mas viver livre numa prisão, e já é muito bom.

fonte: Póvoa Semanário, Fevereiro de 2006

 

É mentira que exista liberdade total de expressão, uma vez que os próprios jornais fazem censura, a censura interna, o que é natural pois eu não posso dizer mal do dono do meu jornal.

fonte: Póvoa Semanário, Fevereiro de 2006

 

Os bons escritores são pessoas que não mentem no seu trabalho.

fonte: Visão, 27.02.2006

 

O que me preocupa são os autores que dizem que «puseram os portugueses a ler». Isso é mentira. Puseram, isso sim, os portugueses a lerem-nos a eles – e isso não é ler.

fonte: Visão, 27.02.2006

 

Há mais artistas do que obras de arte.

fonte: Visão, 27.02.2006

 

Quando morre um pai, tem-se a sensação de que, na próxima vez que a morte aparecer à porta, seremos nós a abri-la.

fonte: Visão, 23.02.2006

 

O que eu tento fazer é pôr a vida toda em cada livro.

fonte: Visão, 23.02.2006

 

Só vale a pena começarmos um romance quando temos a certeza de que não somos capazes de o fazer.

fonte: Diário de Notícias, 17.02.2006

 

Pensar é ouvir com atenção. Para escrever é preciso escutar a voz que dirige a mão.

fonte: Diário de Notícias, 17.02.2006

 

Um bom livro é o que foi escrito só para mim.

fonte: Diário de Notícias, 17.02.2006

 

O grande artista traz uma forma diferente de colorir.

fonte: Diário de Notícias, 17.02.2006

 

Já reparou como os desenhos das crianças são fascinantes até aprenderem a perspectiva? Quando começam a desenhar a três dimensões, perde-se tudo.

fonte: Diário de Notícias, 17.02.2006

 

… são precisas muitas mulheres para esquecer uma mulher inteligente.

fonte: Diário de Notícias, 17.02.2006

 

Teria dificuldade em viver com uma mulher que escrevesse. Eu nunca seria o mais importante na vida dela, viria sempre depois dos livros.

fonte: Diário de Notícias, 17.02.2006

 

Um bom livro ajuda-te, ilumina-te, dá-te a beleza que não encontras em ti. Agora, por exemplo, já se começa a ler aos doentes enfermos. A arte pode ajudar a salvar-te a vida.

fonte: Agência Lusa, 10.11.2005

 

Ainda que o tradutor tenha génio, uma tradução é sempre uma foto a preto e branco de um quadro.

fonte: Agência Lusa, 10.11.2005

 

Um bom livro tem a sua própria chave e o seu manual de instruções.

fonte: Agência Lusa, 10.11.2005

 

Tens obrigação de escrever para os que não têm voz, para os que não conseguem falar, as mulheres casadas, por exemplo, que são as mais infelizes do mundo.

fonte: Agência Lusa, 10.11.2005

 

Os fins-de-semana são horríveis para os casamentos. Em Portugal resolveram o problema com um jornal enorme, que vem em saco plástico.

fonte: Agência Lusa, 10.11.2005

 

Eu adormeço a ler. E há aqueles momentos entre o dormir e o acordar em que começo a ler outras coisas que não estão lá, começo a fazer outro livro. Vinha notando isto e pensei escrever conseguindo um estado próximo deste, em que os meus mecanismos lógicos não funcionam e as palavras flúem através da mão. São as palavras que se geram umas às outras.

fonte: Diário de Notícias, 09.11.2004

 

Aprende-se a escrever, lendo.

fonte: Diário de Notícias, 09.11.2004

 

Isto às vezes é tremendo porque a gente que exprimir sentimentos em relação a pessoas e as palavras são gastas e poucas. E depois aquilo que a gente sente é tão mais forte que as palavras…

fonte: Público, 09.11.2004

 

A palavra carne é sempre a mesma, depende das palavras que se põem antes e das palavras que se põem depois. Para que as pessoas sintam o gosto na boca eu tenho que trabalhar como um cão, até encontrar as palavras exactas antes e depois.

fonte: Público, 09.11.2004

 

Qualquer entrevista é muito inferior a um livro. O livro permite corrigir-se. A entrevista necessariamente está cheia de lugares comuns.

fonte: Público, 09.11.2004

 

Uma coisa é o amor, outra é a relação. Não sei se, quando duas pessoas estão na cama, não estarão, de facto, quatro: as duas que estão mais as duas que um e outro imaginam.

fonte: Diário de Notícias, 09.11.2004

 

Temos de aceitar que há livros muito bons de que não gostamos e livros de que gostamos que podem não ser bons.

fonte: Diário de Notícias, 09.11.2004

 

Saber ler é tão difícil como saber escrever.

fonte: Diário de Notícias, 09.11.2004

 

Com o passar do tempo, há dois sentimentos que desaparecem: a vaidade e a inveja. A inveja é um sentimento horrível. Ninguém sofre tanto como um invejoso. E a vaidade faz-me pensar no milionário Howard Hughes. Quando ele morreu, os jornalistas perguntaram ao advogado: «Quanto é que ele deixou?» O advogado respondeu: «Deixou tudo.» Ninguém é mais pobre do que os mortos.

fonte: Diário de Notícias, 09.11.2004

 

Não fomos feitos para a morte, a não ser para a morte voluntária. A involuntária sempre me pareceu uma tremenda injustiça, para não falar em crueldade.

fonte: Diário de Notícias, 09.11.2004

 

Nós somos casas muito grandes, muito compridas. É como se morássemos apenas num quarto ou dois. Às vezes, por medo ou cegueira, não abrimos as nossas portas.

fonte: Diário de Notícias, 09.11.2004

 

Viver é muito perigoso, mas é um privilégio estar vivo, sobretudo para quem tem, como eu, um único objectivo: escrever. E isso salva-me de muita coisa.

fonte: Diário de Notícias, 09.11.2004

 

É mais sensual uma mulher vestida do que uma mulher despida. A sensualidade é o intervalo entre a luva e o começo da manga.

fonte: Diário de Notícias, 09.11.2004

 

O livro é escrito por duas pessoas: por mim e pelo leitor.

fonte: Diário de Notícias,  18.11.2003

 

A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.

fonte: Diário de Notícias, 18.11.2003

 

Só há grupos onde existem fraquezas individuais.

fonte: Diário de Notícias, 18.11.2003

 

Quando lemos um bom escritor é para nos conhecermos a nós mesmos.

fonte: Público, 15.11.2003

 

O próprio do homem é viver livre numa prisão. Estamos sempre condicionados e até prisioneiros de nós próprios.

fonte: Diário de Notícias, Novembro 2004

 

Sinto uma consideração quase nula pelo que, em Portugal, se publica. Desgosta-me a infinidade de romances desonestos, entendendo por desonestidade não a falta de valor intrínseco óbvio (isso existe em toda a parte) mas a rede de lucro rápido através da banalização da vida. Livros reles de autores reles.

fonte: Visão,  07.08.2003

 

Às vezes é difícil dizer que uma pessoa tem um coração em cada objecto.

fonte: Diário de Notícias, Novembro 2003

 

Seria incapaz de dizer mal de um livro. Mesmo que o livro fosse desonesto, mesmo que o livro fosse mau, não falaria sobre ele. Portanto, se fosse crítico literário era uma maçada porque quase não tinha sobre que escrever.

fonte: Diário de Notícias, Novembro 2003

 

As pessoas compram aquelas coisas [livros] que falam sobre o hoje e quando o hoje se tornar ontem já ninguém vai ler aquilo.

fonte: Diário de Notícias, Novembro 2003

 

Ler é um acto de prazer.

fonte: Diário de Notícias, 2003

 

Ninguém é bom ou mau na cama. Se há um problema sexual, é outra coisa, mas senão há problemas concretos, basta que se goste muito de uma mulher; se isso acontece, ela é a melhor na cama..

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

Há momentos e situações em que o olhar comunica mais que as palavras, isso também é intimidade. Creio que sou capaz de dizer muitas cosas sem falar, é o outro que também tem de compreender e de saber interpretar. Quando se estabelece essa relação de intimidade e de amizade, não é necessário falar. […] frequentemente é melhor não o fazer porque as palavras estão muito gastas.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

A amizade é regida pelo mesmo mecanismo que o amor, é instantânea e absoluta.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

No amor podemos substituir uma pessoa por outra, mas não na amizade, porque cada amigo tem o seu lugar e não podemos substitui-lo.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

Penso que as mulheres são mais ciumentas do trabalho que das outras mulheres. Mas eu entendo isso. Eu não gostaria de viver com uma mulher que escrevesse porque, se fosse como eu, estaria tão concentrada no trabalho que não existiria mais nada.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

Não me importaria de ser condenado a prisão perpétua se tivesse livros e papel para escrever.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

Escrever é como uma droga. Começa-se por puro prazer e acaba-se por organizar a vida como os drogados, em torno do vício. […] até quando sofro vivo isso como um desdobramento: o homem está a sofrer e o escritor está a pensar como aproveitar esse sofrimento para o seu trabalho.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

Não descrevo os personagens, apenas algum detalhe, o cabelo, as mãos, algo assim, porque a descrição limita-me. O leitor tem de imaginar os personagens.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

Nunca conseguirei o romance que quero fazer porque, primeiro, se o fizer, para quê continuar a escrever?; depois, porque é uma luta constante com as palavras, com a resistência das emoções, mas esse é precisamente o encanto do meu trabalho.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

Escrever protege do sofrimento. Quando estou a sofrer e escrevo, não sou só esse homem que sofre, sou também o escritor que está a pensar como aproveitar esse sofrimento para o trabalho.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

Creio que os escritores em geral não trabalham muito os seus livros, não os corrigem. E é uma pena porque, por vezes, trata-se de uma única palavra, mas uma palavra que pode ser fundamental.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

Com cada novo livro afloram todas as fragilidades e problemas do escritor.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

O autor não deve ser protagonista do seu livro porque o leitor não tem de notar que o escritor está ali, este tem de se tornar invisível.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

Porque se escreve? Pergunta a uma macieira  porque dá maçãs.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

Não se pode escrever para ter êxito. Se é isso que se procura, o melhor é começar a cantar.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

Quando escrevo, é claro que sofro, mas também tenho muito prazer a escrever e gostaria que os meus leitores também sentissem esse prazer.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

Tenho uma enorme inveja dos poetas. […] Ninguém escreve romances como eu, mas sou um poeta falhado. […] Talvez os bons romancistas sejam poetas falhados. Não sei.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

O melhor verso é o inesperado, inclusivamente para o poeta.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

Não existem livros maus, para mim, um livro merece sempre respeito. Há tanta esperança, por vezes sofrimento e até a saúde do autor… Eu agradeço os livros que me mandam, antes de os ler, para não ter de mentir, porque as pessoas não têm sentido autocrítico. Se lhes digo: «Eu não gostei do seu livro…», confundem-se a eles com o produto e consideram-no como algo pessoal. Se fosse crítico, criticaria só os livros de que gostasse, porque se pode fazer muito mal, as pessoas ficam muito mal quando recebem uma crítica adversa; é muito doloroso.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

Hoje, os escritores jovens querem ser lidos na segunda-feira, ser publicados na terça, ter um êxito extraordinário na quarta e na quinta ser traduzidos em todo o mundo.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

Viver é como escrever sem corrigir.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

Viver diverte-me muito. Nunca me aborreço quando estou sozinho.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

Não gosto de ir a determinados ambientes, porque também me dou conta de que há um terror reverencial que impede a proximidade. Estão sempre à espera que diga coisas inteligentes e, por sua vez, protegem-se não falando.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

Penso que as mulheres são mais ciumentas do trabalho que das outras mulheres. Mas eu entendo isso. Eu não gostaria de viver com uma mulher que escrevesse porque, se fosse como eu, estaria tão concentrada no trabalho que não existiria mais nada.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

O Partido Comunista é uma Igreja, com a sua fé, as suas tradições e a sua hierarquia. Não mudou.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

Vivemos numa época em que a ideologia é uma ideologia de produção e [os comunistas] não compreenderam que o poder não está nas mãos de nenhuma ideologia, mas das multinacionais: quem produz está bem; quem não produz, é expulso.

fonte: Conversas com António Lobo Antunes, de María Luisa Blanco, 2002

 

A única forma de abordar os romances que escrevo é apanhá-los do mesmo modo que se apanha uma doença.

fonte: Segundo Livro de Crónicas, 2002

 

Mesmo as pessoas que escrevem para os jornais, que no dia a seguir servem para embrulhar o peixe frito, devem medir as palavras por respeito à língua e a nós mesmos.

fonte: Diário de Notícias, 08.12.2001

 

A forma como lidamos com o fim é muito judaico-cristã, muito ligada à ideia do cadáver e do horrível ritual da morte. Tentei sempre, em relação aos meus mortos, guardar a imagem da pessoa viva, nunca os quis ver depois de terem morrido.

fonte: Diário de Notícias, 08.12.2001

 

A morte das pessoas de quem gostamos amputa-nos.

fonte: Diário de Notícias, 08.12.2001

 

Nós morremos quando desaparecem as últimas pessoas que ouviram falar de nós.

fonte: Diário de Notícias, 08.12.2001

 

A vida faz-me sentido enquanto trabalho.

fonte: Diário de Notícias, 08.12.2001

 

A loucura é exceder os limites impostos pelos médicos, limites que variam muito de caso para caso.

fonte: Diário de Notícias, 08.12.2001

 

Durante anos, mesmo em relação a jornalistas, tentaram à força colar-me a imagem que imaginavam que eu fosse, ainda agora. […] Sou arrogante, mal-educado, rebelde, geralmente sou sempre o António Lobo Antunes somado a qualquer coisa desagradável. Não corresponde a nada do que sou, a nada.

fonte: Diário de Notícias, 08.12.2001

 

Esquecer uma mulher inteligente custa um número incalculável de mulheres estúpidas.

fonte: Livro de Crónicas, 1998

 

O desgosto é a melhor forma de assassínio por nunca se encontrar a arma do crime.

fonte: Livro de Crónicas, 1998

 

Não sou um senhor de idade que conservou o coração menino. Sou um menino cujo envelope se gastou.

fonte: Livro de Crónicas, 1998

 

Um parvo em pé vai mais longe que um intelectual sentado.

fonte: Livro de Crónicas, 1998

 

A gente não pode compreender os sentimentos sem o contrário deles.

fonte: Expresso, 07.11.1998

 

Muitas vezes, põem-se meninos e meninas de vinte anos a escrever críticas. E há outros que também escrevem romances. É muito raro aparecerem bons romances antes dos trinta anos, muito raro. Um tipo só pode fazer uma coisa de jeito depois de ter passado pelas coisas. Se não viveu, os livros até podem estar «tecnologicamente» correctos, mas não há ali mais nada. A experiência de vida cada vez mais me parece fundamental.

fonte: Ler, 1997

 

Faz-me imensa confusão a polémica crítica versus escritores. Para mim, o problema é muito simples: a maior parte dos escritores não sabem escrever e a maioria dos críticos não sabe ler. E também há muita ignorância e má-fé de parte a parte. A sensação que tenho é que ando há que tempos a ensinar os meus críticos a ler e eles não há meio de aprenderem.

fonte: Visão, 26.09.1996

 

O que me interessa são pessoas que tenham uma espessura de vida. Interessa-me pouco o romance filosofante, esses livros imóveis onde as personagens são todas cérebro e não têm vida, nem sangue, nem esperma.

fonte: Diário de Notícias, 27.04.1994

 

Não consigo conceber uma história onde as personagens não tenham carne. E se eu partir de uma carne já real para mim, torna-se muito mais fácil.

fonte: Expresso, 07.11.1992

 

O que é escrever? No fundo é estruturar o delírio, e tem graça porque quando se trata o delírio o que aparece sempre é uma depressão subjacente.

fonte: Expresso, 07.11.1992

 

Numa coisa estou de acordo com o [Jorge Luis] Borges, a função do crítico não é dizer “isto é bestial”, mas ajudar a pessoa a ler a porcaria do livro.

fonte: Expresso, 07.11.1992

 

Um amigo meu, o Daniel Sampaio, talvez o melhor psiquiatra português, costuma dizer que só os psicóticos são criadores. Você fala com um neurótico e são tipos que não são nada, que são chatos, repetitivos. Os psicóticos são espantosos, dizem frases espantosas, estou-me a lembrar de uma que era «aquele homem tem uma voz de sabonete embrulhado em papel furtacores». Isto é uma frase do caraças.

fonte: Expresso, 07.11.1992

 

Quando se pergunta porque é que determinado quadro de Picasso está a verde, às vezes é por que o encarnado se tinha acabado. Não vale a pena ir mais longe.

fonte: Expresso, 07.11.1992

 

No fundo o que é um maluco? É qualquer coisa de diferente, um marginal, uma pessoa que não produz imediatamente. Há muitas formas de a sociedade lidar com estes marginais. Ou é engoli-los, transformá-los em artistas, em profetas, em arautos de uma nova civilização, ou então vomitá-los em hospitais psiquiátricos.

fonte: Público, 18.10.1992

 

Todos nós, homens e mulheres, não somos, de facto, tão diferentes, senão aquilo que escrevemos ou pintamos não teria nenhum impacto nos outros. Afinal, o que nos faz aderir a um livro é pensar «É mesmo isto que eu sinto e não era capaz de exprimir», não é?

fonte: O Jornal, 30.10.1992

 

Quando escrevo, penso apenas em exorcizar certas emoções, descrevê-las, vivê-las. O leitor é um acto secundário, penso nele nos últimos acabamentos do livro, quando sinto que isto ou aquilo não está inteligível

fonte: O Jornal, 30.10.1992

 

No fundo, um escritor é um bocado um ladrão, um gatuno de sentimentos, de emoções, de rostos, de citações. Um livro é sempre feito de pequenos roubos com a vantagem de não sermos condenados.

fonte: O Jornal, 30.10.1992

 

Eu penso que aquilo que faz com que nós continuemos vivos e capazes de criar é isso mesmo, uma inquietação constante. Sem ela não pode haver criação, quem não põe sempre tudo em causa, arrisca-se a ter uma vida interior de três assoalhadas, num bairro económico.

fonte: O Jornal, 30.10.1992

 

Todos nós, homens e mulheres, não somos, de facto, tão diferentes, senão aquilo que escrevemos ou pintamos não teria nenhum impacto nos outros. Afinal, o que nos faz aderir a um livro é pensar «É mesmo isto que eu sinto e não era capaz de exprimir», não é?

fonte: O Jornal, 30.10.1992

 

Custa-me conceber um poeta que nunca tenha feito amor. E às vezes quando leio certos prosadores portugueses, não têm esperma nenhum lá dentro, são tudo coisas que se passam dentro da cabeça. Pensam muito. E a literatura faz-se com palavras.

fonte: Público, 18.10.1992

 

Eu gosto desta terra. Nós somos feios, pequenos, estúpidos, mas eu gosto disto.

fonte: Ler, 1997

 

Eu penso que em literatura não há palavrões.

fonte: Jornal de Letras, 05.04.1988

 

Um escritor é, por natureza, um carenciado de afecto.

fonte: Jornal de Letras, Novembro 1985

 

Mas houve livros chatos como o da Agustina Bessa Luís e o do Virgílio Ferreira que os académicos e os universitários devem achar muito bons, eu, como não sou nem académico nem universitário acho-os terrivelmente chatos.

fonte: Jornal de Letras, 1984

 

Se um escritor não agarra o leitor pelas tripas logo nas primeiras páginas, está feito ao bife. Céline é um desses, agarra-nos logo.

fonte: Jornal de Letras, Novembro 1983

 

[escrever] Dá um trabalho do caraças! Despentear a prosa de maneira que aquilo seja feito como uma diarreia.

fonte: Jornal de Letras, 1983

 

(…) penso no absurdo de escrever. De estar a escrever quando podia estar com os amigos, ir ao cinema, ir dançar que é uma coisa de que gosto… mas não, um tipo está ali e é um bocado esquizofrénico. (…) Há sempre uma parte subterrânea nas obras de arte impossível de explicar. Como no amor. Esse mistério é, talvez seja, a própria essência do acto criador. (…) Quando criamos é como se provocássemos uma espécie de loucura, quando nos fechamos sozinhos para escrever é como se nos tornássemos doentes. A nossa superfície de contacto com a realidade diminui, ali estamos encarcerados numa espécie de ovo… só que tem de haver uma parte racional em nós que ordene a desordem provocada. A escrita é um delírio organizado.

fonte: Jornal de Letras, Janeiro 1982

António Lobo Antunes em Buenos Aires, 2004

Convidado pela Editorial Sudamericana, Grupo Editorial Mondadori, para apresentar o seu livro Buenas Tardes a las cosas de aquí abajo, o escritor português António Lobo Antunes veio no mês de Maio e apresentou-se na Feira Internacional do Livro de Buenos Aires. Foi declarado Hóspede de Honra pela Legislatura da Cidade Autónoma de Buenos Aires.

 

Nós que o lemos nas crónicas que escreve para o diário El País de Espanha, excelentemente traduzidas por Mario Merlino, e lemos seus livros, sabemos quão extraordinário escritor é António Lobo Antunes.

 

Falava em voz muito baixa, mostrava-se muito cansado, vinha acompanhado do seu editor espanhol, havendo passado pela Colômbia, onde apresentou o mesmo livro. O público escutava o escritor com respeitoso silêncio.

 

A viagem, o livro

 

Foi muito duro“, disse a respeito da sua estadia na Colômbia, referindo-se à pobreza, à violência, à agressividade das pessoas. Na Colômbia as classes altas olham de cima para o povo, disse o escritor. Situação que poderá ser extensiva a vários países da América Latina.

 

Encontrei cá na Argentina alguns dos melhores jornalistas que encontrei na minha vida“, disse. “Senti-me compreendido sem palavras“, afirmou. O escritor manifestou o seu cansaço em falar, de mostrar simpatia, de sorrir, de demonstrar interesse durante a promoção do seu livro que já vinha antes de Colômbia, em outros países da Europa. “Creio que que não tenho somente respostas mas também perguntas“, disse. “Não quero falar muito sobre o livro porque se pudesse falar dele, não o havia escrito“, afirmou Lobo Antunes. “Passei dois anos da minha vida escrevendo-o. É muito diferente do livro que queria escrever. Necessitava de um ponto de referência“. Partiu da ideia das seitas religiosas que se apropriam das pessoas sem cultura nem dinheiro. “A mão rejeitava essa solução. A mão voou até África, não tinha regressado a África depois da guerra”, disse. “Não há nada mais violento que a guerra. Uma violência e uma crueldade que ao mesmo tempo me fez dar conta de facetas escondidas em mim“, disse. “Há sentimentos contraditórios que nos habitam. Em todos os livros que as editoras publicam com o meu nome interessa-me que as páginas sejam como espelhos que nos devolvam essa visão dos sentimentos que nos habitam“.

 

A guerra

 

Eu queria ter um filho porque pensava que ia morrer. Tive uma filha, quando regressei a casa não a conhecia. Custou-me três ou quatro anos para ter uma relação normal, a minha primeira reacção foi dizer esta não é a minha filha. No país mais sensual que conheci, África, em vez de fazer amor o que se fazia era apanhar prisioneiros, ter mortos.

 

Quando era médico

 

Quando era médico interno tinha que fazer três meses de cirurgia, de obstetrícia, de outras especialidades. Mandaram-me para a enfermaria de crianças com cancro terminal. Havia um caso de um menino de quatro anos, eu tinha vinte e dois. O menino, José Francisco, morreu. Estava na porta da enfermaria e via o pé do menino, haviam-no envolvido num lençol e via-lhe o pé. Tenho a sensação que é por esse pé que escrevo. Por um menino morto, não sei porque razão e em nome de quê. Há que escrever pelos que não têm voz, pelos que não podem falar, pela mãe das minhas filhas que morreu de cancro faz quatro anos. Também escrevo com muita alegria, não tenho tempo para deprimir-me. Tenho momentos em que a minha cabeça está cheia de cães negros que se devoram uns aos outros.

 

O seu último romance: uma história de amor

 

Em Novembro de 2003 terminou o romance “Eu Hei-de Amar Uma Pedra”. De manhã escrevo no hospital, à noite no meu atelier, escrevo com a porta aberta, não gosto das portas fechadas.

 

Então contou o seguinte: “Vi passar uma senhora de negro e o médico que estava por ali contou-me a sua história: a mulher era uma camponesa de origem, e trabalhava como costureira. Quando jovem namorava com um rapaz que trabalhava no campo. Os seus pais mandaram-na a Lisboa para que tivesse uma vida melhor, para casa de uns parentes. O noivo também trabalhava muito. Viam-se quando se cruzavam na rua. Ela adoeceu de tuberculose, o rapaz escrevia-lhe mas os parentes não a deixavam responder-lhe. Ele pensou que ela teria morrido. Casou-se, estudou e teve filhos. A rapariga não morreu, voltou a trabalhar como costureira. Dez anos depois, um dia em que ela regressava depois de entregar umas roupas às clientes, encontrou-se com ele na rua. Durante cinquenta e três anos todas as quartas-feiras encontravam-se numa pensão. Ele estava casado. Não faziam amor, davam as mãos. Iam ver as acácias em flor. Ele ganhava muito dinheiro. Tinha alugado um quarto. Morreu quando estava com ela. O problema era como fazer sair o corpo da pensão sem que a esposa soubesse daquela relação. Ela chamou um dos genros dele para que o fizessem. Ela não pode ir ao funeral. Foi ela que contou assim esta história. Contei-a depois às minhas filhas e disseram-me: que mulher tão idiota. Para mim, a mulher da história tinha ficado com o melhor desse homem. Queria escrever essa história. Estive dois anos e escrevi um livro de amor. Hemingway dizia sempre que as histórias de amor têm um final triste. Tenho visto na minha família histórias de amor felizes, queria que essa história de amor me corresse no sangue. Não gosto de contar histórias mas contei-a para dizer que estou feliz por estar aqui“.

 

 

original escrito por Araceli Otamendi

encontrado no site Triplov

[traduzido do espanhol por José Alexandre Ramos]

Encontro com António Lobo Antunes

Na noite em que conheci António Lobo Antunes – disse Armas Marcelo na apresentação – estava exactamente tal como o vêem agora. Estávamos jantando vários numa mesa e ele permanecia absorto, concentrado em si mesmo, como se estivesse noutro lugar. Porém, estava inteirando-se de tudo, como agora…

 

O escritor português António Lobo Antunes com o escritor canário

Juancho Armas Marcelo, durante o encontro. Foto de EFE (El Mundo).

 

Desculpem-me se não me ouvem bem, falo muito baixo.

 

Lembro-me com livros desde que nasci. O meu pai estava sempre a ler. E eu me perguntava que conteriam aqueles livros, que não tinham desenhos, nem fotografias, mas tão só palavras. Aos três anos tive tuberculose, e exilaram-me em casa do meu avô paterno. O meu avô era capitão de cavalaria e achava que isso de ler eram mariquices, coisas de mulheres.. Isso fez com que me sentisse dividido, pois via o meu pai concentrado nas suas leituras e ficava com dúvidas se ela seria maricas. As minhas tias, ali em casa do meu avô, tinham a colecção toda de Corín Tellado. Assim foram essas as minhas primeiras leituras. E Flash Gordon e Mandrake. Não posso dizer como muitos escritores que posam afirmando que as suas primeiras leituras foram Homero, Ovídio, etc.

 

Tempos depois mandaram-me para o outro avô, no Norte. O comboio trazia o jornal ao meio-dia. O meu avô só lia a necrologia. Lia um nome. E exclamava: “morreu aos cinquenta anos, que idiota!”. Depois outro nome, e: “morreu aos quarenta e dois anos, que estúpido!”. Era o seu triunfo quotidiano sobre a morte, o seu modo de exprimir que ia seguindo vivo. Vi a morte então de outro modo: a morte era quando os olhos se tornavam pálpebras. Nada mais que isso. A avó, por seu lado, dava-me a Vida dos Santos para ler, mas não gostava muito.

 

Aos oito ou nove anos, lembro-me, estávamos de férias na praia. Meu pai só ia aos fins-de-semana para nos atormentar. Impunha-nos ler durante a semana o capítulo de um livro e escrever uma “apreciação”. Então passei o verão escrevendo “apreciações”. Embora deveria seguir aquele dito: “eu jamais leio os livros que critico para não me ver influenciado por eles”. Recordo o meu pai nesses fins-de-semana lendo sem parar Flaubert e outros escritores franceses. Meus pais eram um casamento feliz: o meu pai mandava e a minha mãe obedecia. Como todos os homens e mulheres dessa época.

 

Com nove ou dez anos comecei a escrever. Poesia. Muito má. Um dia quis saber o que achava a minha mãe das minhas poesias. Comprei um papel especial e escrevi com uma caligrafia muito cuidada. Minha mãe disse-me para me dedicar a outra coisa, que não pensasse em escrever porque não tinha talento algum para a escrita. Mas esse comentário estimulou-me: comecei a escrever contra a minha mãe.

 

Depois, quando se chega aos quinze anos descobre-se a diferença entre a boa escrita e a má. Aí começa a angústia. E depois, a diferença entre a boa escrita e a obra de arte. E finalmente, entre a obra de arte e a obra-prima. E a angústia já não nos abandona, nunca.

 

O meu tio vinha de vez em quando do Brasil – porque o meu pai era filho de um brasileiro casado com uma alemã – e trazia-nos um montão de livros. Então a minha mãe pegava num lápis vermelho e outro azul, e com o vermelho ia marcando aqueles livros que não podíamos ler e com o azul os livros permitidos. As cruzes vermelhas eram destinadas a livros em que apareciam mulheres nuas e coisas assim. Se fosse por minha mãe, a raça extinguia-se connosco, porque censurava tudo que fosse relacionado com a reprodução.

 

Meu pai era neurologista, um grande admirador de Ramón e Cajal. Trabalhava na Alemanha e vinha apenas uma semana por ano para nos ver. E quando se ia embora, o ventre de minha mãe começava a crescer. Eu perguntava-me: Que haverá na Alemanha que faz crescer o ventre da minha mãe?

 

Um irmão da minha mãe trabalhava numa revista literária, e ofereceu-me uma subscrição. Aí li um poema em que reparei que as palavras, a sintaxe, a gramática podia ser retorcida, forçada. Não há que respeitar as palavras, mas tratá-las como um corpo, como um corpo de mulher, há que apalpá-las, cheirá-las, apertá-las…

 

Frequentava um restaurante de escritores. Escritores que tinham já livros nas livrarias. E eu observava-os: um cuspia ao comer, outro tinha coisas brancas no cabelo, outro remexia continuamente um palito na boca. Eu pensava que os escritores eram espíritos puros. Um dia conheci um deles, um poeta amigo do meu pai, muito gordo, vestido completamente de linho branco e comendo um gelado em frente de uma loja de lingerie. Eu olhava aquele homem chupando sem parar aquele gelado enquanto contemplava os soutiens. Embora depois ele nunca tivesse escrito sobre soutiens. De tanto ver aqueles escritores pensei: “Tenho de ser feio, senão não posso ser escritor”.

 

Aos quinze anos, os dirigentes do Benfica vieram a casa para falar com o meu pai. Queriam inscrever-me, e assim fui jogar no Benfica. Ia aos treinos com um livro, por exemplo, Quevedo, que é um dos meus escritores preferidos. E os outros jogadores estranhavam por eu levar livros para os treinos. Com dezasseis anos, chamaram-me à selecção nacional para jogar a Taça da Europa. O treinador tinha dúvidas em colocar-me: não pelo meu jogo, mas porque lia. Gostava de ler de tudo. Hoje continuo gostando de ver os escritores autografando livros nas férias. Escrever é tão difícil…

 

Chega um dia em que se encontra os escritores favoritos. Quando encontrei os meus, era como ir caminhando entre a névoa: não os entendia. Lemos sempre segundo o nosso critério,  a nossa experiência, as nossas emoções. Mas cada livro há que ser lido não com as nossas chaves mas com olhos virgens, desprevenido, de modo que se estabeleça uma relação pessoal com ele: “Emily Dickson escreveu para mim, não tenho a menor dúvida”. E esses livros não se podem emprestar.

 

Durante o curso de medicina, ia escrevendo, mas tudo me parecia mau. Não participei em movimentos estudantis, nem em revoltas contra Salazar: escrevia, lia e jogava ao xadrez. Ao acabar o curso, comecei a trabalhar num hospital inglês fora de Lisboa e ao regressar a casa pelo Natal, tinha uma notificação do exército para ir à guerra. Pensei em fugir, mas os cidadãos não tinham passaporte. Tudo era controlado pela polícia política. Pagando muito, talvez se pudesse escapar, assim só gente de muito dinheiro conseguiu fugir. Anos antes, o meu avô tinha prometido que se aquele menino de três anos não morresse de tuberculose me levaria a fazer a comunhão a Pádua, ao túmulo de Santo António. Devido à impossibilidade de viajar ao estrangeiro, não me pôde levar, mas ofereceu-me as fábulas de Lafontaine, que não li então, mas depois. Daquelas fábulas impressionou-me que um cão pudesse olhar para um bispo. Esse era um conceito democrático, porque até então só o bispo é que podia olhar para o cão.

 

Mandaram-nos para Angola. Éramos um grupo de seiscentos e morreram cento e cinquenta. Todos putos: nós os oficiais tínhamos vinte e três anos e os soldados tinham vinte. O capitão tinha trinta e quatro e parecia-me um velho, estava acabado. Este capitão obrigava os oficiais a usar gravata para sentar a jantar. Eu odiava isso. Estávamos todo o dia em uniforme de campanha, sujos e salpicados de sangue. Vendo os nossos companheiros morrer ou cair feridos. Tudo era sangue, sangue. Depois entendi que esse gesto de colocarmos a gravata era para preservar a humanidade, para continuar a manter contacto com a humanidade. Também líamos poesia uns aos outros durante o jantar. Creio que isso nos salvou da loucura. Lembro-me de um soldado, que se pôs de pé durante a noite, pegou na sua arma e caminhando entrou sozinho na mata. Queria morrer. Por esse caminho chegava-se ao inimigo. Entendi porque é que os nazis ou a polícia política de Salazar queimavam os livros. Em Angola, durante a guerra, vi que os livros tinham uma utilidade prática.

 

Cada vez gosto de menos escritores, porque agora quando leio não sou inocente. Começo a ler e começo a corrigir. É tão difícil escrever. E mais difícil corrigir. Uma primeira versão é sempre má, mas já está tudo nela. Há que trabalhar e trabalhar sobre ela. Há três coisas necessárias para ser escritor: paciência, orgulho e solidão. Sobre a solidão lembro-me sempre as palavras de Sánchez Ferlosio: “Carmen é uma viúva que tem o defunto em casa”.

 

Eu escrevia romances e atirava-os ao lixo. Escrevia para ser o melhor. E sabia que não o era. Portanto, se não lograva, seria melhor atirá-los ao lixo.

 

Conheci um advogado com uma biblioteca imensa. Era um homem muito atraente, notei pelos olhares das mulheres. Um dia perguntei-lhe: “Miguel, continuas a comprar livros?” “Não, creio que se reproduzem entre si.”

 

Cada vez mais vou diminuindo os meus autores preferidos: Conrad, Tolstoi quase sempre, Tchékov sempre, Quevedo. Gostei de Nabokov. De certo modo todos somos filhos de Nabokov, mas já não gosto.

 

Vive-se sabendo que nunca se fará o livro perfeito que se quer fazer.

 

Com a revolução de 1974 as pessoas esperavam que saíssem as obras primas que tinham permanecido no fundo das gavetas do escritores durante a ditadura. Mas não saiu nada. Os escritores continuavam a ter medo. Sartre, por exemplo, foi muito cobarde na invasão nazi, e foi a Lisboa para ensinar a revolução. E então um dia comecei a escrever Memória de Elefante. Nele narro o país que encontro ao regressar da guerra em Angola. Muitas coisas tinham mudado, e no fundo tudo continuava igual. Leu-o um amigo que depois passou a outro. Um dizia-me: “é melhor que tires a primeira parte”, e o outro: “é melhor que tires a segunda parte”… Esse livro passou um ano sendo rejeitado pelas editoras. Finalmente saiu em 1979, em Julho, quando as pessoas iam de férias. O editor disse-me que Antunes era feio, e que seria melhor que o meu nome se ficasse por António Lobo. Mas disse-lhe: “Meu pai chama-se Lobo Antunes, que quer que faça?”. Suponho que o editor procurava um truque porque não se vendia nada. Fui de férias em Agosto, as minhas filhas mais velhas eram ainda pequenas, e quando regressei tinham-se vendido cento e cinquenta mil exemplares do livro, e era famoso. O livro tinha uma foto na contracapa e as raparigas diziam: “certamente o livro é uma merda, mas vende-se porque ele é tão bonito”. Seria graças aos meus olhos azuis.

 

Depois, comecei a escrever mais devagar: três ou quatro linhas por dia. Meia página se tanto. À noite, quase a dormir, lia coisas que não estavam no livro. E dei-me conta de que esse estado mental próximo dos sonhos tornava-me criativo. E chego a esse estado mental quando me sinto fatigado.

 

(Nesse momento cai o cartaz atrás de si que promove a Noite dos Livros e fica quedo. Depois acrescenta: “É porque me chamo Antunes”)

 

Do que se publica agora, poucas coisas me chamam a atenção. Há dois anos li um livro intitulado “Alondra” que me maravilhou. É um casal velho que tem uma filha muito feia e que parte durante uma semana para visitar os tios. O casal fica só e em duzentas páginas o escritor descreve tudo, todos os sentimentos de angústia, de ternura, de rancor. Tudo está ali. Este romance é de 1924 ou 25 e ainda conserva a frescura. Tudo está descrito com uma mão maravilhosa. A capacidade de surpresa vai diminuindo porque já se leu muito. No século XIX havia trinta génios escrevendo ao mesmo tempo. Só em Inglaterra Dickens, Lewis Carrol, Keats, Dickinson, etc e assim nos outros países da Europa, mas agora não há mais que quatro ou cinco em todo o mundo. Outro dia estava com o meu sobrinho de seis anos. Eu trabalhava e ele jogava com o seu Gameboy. Essa criança foi privada da sua capacidade de imaginar, de sonhar, de desenvolver um pensamento. Só lhe importava matar e matar os inimigos naquela coisa. O mesmo se passa com a televisão. Em Portugal não temos “Aquí hay tomate”, que me encanta. Que se passa com o filho da Pantoja? É tudo tão estúpido que é maravilhoso. Dentro de vinte anos temo que não vão aparecer bons escritores. Mas isso tão pouco importa: de cada vez que se lê Guerra e Paz, Tolstoi escreve-o de novo, porque descobre-se sempre coisas novas. Disse Keats: “A boa arte é uma alegria para sempre”, e tem razão. Um livro tem que ser uma festa. O meu pai morreu fará em Junho dois anos, e lembro o que o padre disse: “Não fomos feitos para a morte mas sim para a vida”. Odeio isto, mas tinha razão. Borges disse que Quevedo não é um escritor, é a literatura inteira. Ontem estive folheando-o no hotel. Um livro é mais possessivo que uma mulher ciumenta.

 

Espero que não se tenham aborrecido por ter falado tanto tempo…

 

original escrito por Oscar Marcos Mallo

em Dosdoce, Abril de 2006

[traduzido do espanhol por José Alexandre Ramos]

O regresso das caravelas [*] (As Naus)

Com publicação prevista para Abril (co-edição Dom Quixote/Círculo de Leitores), O Regresso das Caravelas [*], novo romance de António Lobo Antunes, promete criar agitação. Aqui está o autor: polémico, difícil, excessivo. E até melancólico.

 

Imagine que os retornados voltavam nas naus que sobraram aos naufrágios, e que os caixotes que se acumulavam em Alcântara tinham escritos nomes destes: Luís de Camões, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Diogo Cão, Francisco Xavier, Manuel de Sepúlveda. Imagine que Dom Sebastião foi esfaqueado num bairro de Marrocos por roubar um saquinho de liamba a Oscar Wilde. Tome o primeiro eléctrico da manhã de Lisboa, e veja os operários que vieram dos subúrbios a rendilhar o mosteiro. As caravelas regressaram e Dom Manuel foi preso por conduzir na marginal Lisboa-Cascais com documentos em letra gótica. As tágides entornam-se pela noite dos bares, em vestidos de lamé. António Lobo Antunes parece-me inquieto, distraído e tímido. Cansado de fazer de bad boy. De divertir, escandalizar e embirrar. Tem quarenta e cinco anos, é famoso e lido no estrangeiro. Ri-se e pede ao fotógrafo que o apanhe pelo lado melhor. Ele sabe que tem um lado melhor. Cortou muito nos adjectivos, está agora mais perto do desamparo inicial, do pecado original. Cansado dos teatros da vida eterna, gira em torno da sua estátua, estranha-a, como se temesse que ela lhe roubasse a luz, o espontâneo calor do tempo.

 

Nos seus primeiros romances (de Memória de Elefante a Explicação dos Pássaros) escrevia sobre pessoas, transformava as pessoas em personagens. A partir do Fado Alexandrino, parece tender a fazer o contrário: as personagens é que se tornam pessoas, o que lhe interessa é apanhar a voz de um tempo, o sentido da História. Concorda?

Talvez. Afinal, os primeiros livros que as pessoas escrevem são sempre autobiográficos, ajustes de contas com o que a gente tem para trás, para depois poder começar realmente a escrever… Talvez isso aconteça desde o Fado Alexandrino, sim…

 

Quer dizer que considera menos importantes os livros que escreveu antes do Fado Alexandrino?

Não sei o que é que é mais ou menos importante. Mas a partir do Fado Alexandrino a agulha mudou, comecei a tentar falar de outras coisas…

 

A tentar?

Tentar, sim. Não podemos senão tentar.

 

Portanto, a partir do Fado Alexandrino tem as contas com o passado todas ajustadas…

Acho que sim. É que é quase inevitável que se comece pela autobiografia… Depois a gente começa a tentar libertar-se… Ao princípio, eu tinha aquela ideia de fazer uma trilogia sobre a guerra, sobre os hospitais psiquiátricos, coisas que tinham muito a ver directamente comigo. Isso já não tem nada a ver com o que me interessa agora.

 

O que é que passou a interessar-lhe?

Não sei explicar-lhe, não é nada de muito consciente… No fundo, o que me interessa é aquilo que sempre me interessou: escrever bons livros, encontrar uma maneira pessoal de escrever livros bons. Contar a história da tribo, fazer com que os personagens fossem mais emblemáticos… Ao mesmo tempo, neste livro há qualquer coisa de onírico – mas não tem nada a ver com o realismo mágico, de que eu não gosto. Penso eu que não tem nada a ver.

 

Mas neste livro faz ao contrário: tira a aura mítica aos personagens que eram emblemáticos. Cervantes é um vendedor de cautelas, S. Francisco Xavier é um chulo…

Pois, os personagens passam a ser emblemáticos de outra maneira, não é? Este foi o livro que me levou mais tempo a escrever – três anos. Nas primeiras versões, era só uma história de retornados, com nomes normais; só para a terceira ou quarta versão é que me apareceu a ideia de aproveitar os navegadores e pô-los nos dias de hoje, para tentar dar uma multiplicidade de sentidos à história. Andei muito tempo à procura desta história, depois de acabar o outro livro.

 

À procura do tema?

Sim, à procura da maneira de contar esta história.

 

Mas qual era a história que queria contar?

Era a história dos retornados – portanto, a primeira história era menos ambiciosa. Era só a história da volta a Portugal (que horror, isto assim dito parece conversa de ciclismo). [Risos] Mas depois é que me começou a surgir a ideia de que podia fazer a segunda parte d’ Os Lusíadas: enquanto Os Lusíadas é um crescendo, eu faria o decrescendo. O livro até estava dividido nas partes d’ Os Lusíadas: Proposição, Invocação, Dedicatória e Narração. Bom, depois a determinada altura isto foi muito subvertido. Também porque este foi o primeiro livro que escrevi sem um plano muito definido, muito minucioso…

 

Costuma ter um plano exacto, do princípio ao fim?

Sim, um plano prévio, muito minucioso.

 

E quando vai escrever, as coisas encaixam todas no plano?

Que remédio têm elas! [Risos] Enfim, encaixam cada vez menos. Mas quando são livros muito compridos, a gente tem que ter um mapa para não se esquecer quem é pai de quem, e por aí fora… Depois houve capítulos inteiros que desapareceram do livro. Num deles, por exemplo, a filha do Nuno Álvares vai ao otorrino por causa das trombetas castelhanas, que o pai estava sempre a ouvir. Esse desapareceu, desapareceram outros…

 

E porque é que foram desaparecendo?

[Grande silêncio] Porque… Sei lá. Porque eu achei que ficava melhor assim. É que um livro com tantas páginas acabava por se tornar cansativo para o leitor. Mas essa foi uma razão secundária; antes de mais, o livro começou a tornar-se cansativo para mim. Deu-me a sensação que estava a andar à volta, sempre à volta… E depois, a gente começa a sentir que está a chegar ao fim, é uma sensação esquisita… Mas fiquei sempre com muitas dúvidas sobre se aquele seria mesmo o fim, e daí ter dado o livro a ler…

 

A amigos seus?

Sim. Levei o livro para Paris para o dar a ler ao meu agente.

 

Mas já nesta última versão curta?

Não, não, na penúltima versão ainda. Depois deram-se provas, e escrevi muito nas provas. Fui muito emendado. Sobretudo, cortado. Adjectivos, adjectivos, adjectivos…

 

Sim, cortou muitos adjectivos, mas ficaram coisas muito suas. Por exemplo, frases de intenso lirismo, declarações de amor que não vêm a propósito, e que introduz no meio de uma descrição que era até aí na terceira pessoa. Logo ao princípio, num capítulo sobre o Camões, teme esta: «A tonalidade das ondas contra a pedra mudara, agora transparente e doce como o som dos teus olhos».

Ah, isso são recados. Aliás houve frases dessas que foram suprimidas, e era suposto que essas coisas fossem escritas pelo Camões. Como o livro todo.

 

Porque é que desistiu de pôr Camões como narrador? Achou que ele não tinha legitimidade para escrever a antiepopeia?

Claro que tem, bolas. O Camões gostava de amar, gostava de comer… Ao contrário do Fernando Pessoa, que era um chato. Gostava das coisas boas da vida.

 

Mas, curiosamente, aqui, o Camões é dos que ama e come menos…

Coitado, também eu não quis gastá-lo! [Risos] Eu gosto muito do Camões. Do Camões, do Bernardim, do Bocage… O Bocage tinha o sentido da vida. E ao mesmo tempo era tão pouco intelectual, no sentido português da palavra…

 

Já não gosta, por exemplo, do Padre António Vieira?

No livro?

 

Sim. Diz que os sermões dele são sermões de ébrio…

Então, o homem estava bêbado, que culpa é que eu tenho que ele vá para a discoteca bêbado?

 

Mas porque é que o pôs na discoteca bêbado?

Sei lá, não fiz racionalizações desse tipo… O homem era assim… Não havia outra maneira de dizer as coisas, não sei explicar isto…

 

Porque é que o regresso destas caravelas é tão triste, porque é que Lisboa é uma cidade tão desolada?

Acha que o livro é triste?

 

É. Não me diga que não sabia…

Palavra de honra. Pensava que era um livro divertido.

 

É divertido. Mas divertido não é o antónimo de triste.

Olha, eu pensava que era um livro divertido e alegre. E maluco. Mas por acaso, quando reli, achei que aquelas histórias não eram tão doidas como isso…

 

É divertido para quem lê. Mas nota-se que quem escreveu estava triste, ou quase desesperado…

A minha visão do mundo é pessimista.

 

Acaba-se com a sensação de que os laços entre as pessoas não valem nada, de que as viagens não valeram nada…

Acha? Mas aquela mulher gosta muito daquele homem…

 

Qual, a do Diogo Cão?

Pois. Não gosta? Ele não lhe liga nenhuma, mas ela gosta imenso dele.

 

E depois há aquele casal de velhos sem nome. Manteve aquele casal anónimo na versão inicial?

São todos da versão inicial. Mas esses dois, achei melhor mantê-los simplesmente assim.

 

Se os personagens já eram os mesmos, quando só queria contar a história dos retornados, como é que depois lhes distribuiu os nomes?

Não sei. É uma coisa interna, tinha que ser assim. Não sei explicar.

 

Não havia nenhuma intencionalidade quando, por exemplo, juntou o Camões no porão do navio, com o caixão do pai dele, e com o Vasco da Gama reformado da sueca e com o Cervantes vendedor de cautelas? Ou quando fez o Pedro Álvares Cabral sair do país na furgoneta da loja de televisões, com os ciganos Lorca e Buñuel e com os matadores de Inês de Castro?

Como é que hei-de dizer? Não podia ser de outra maneira. Nada disto tem que ver com os processos racionais… É muito engraçado; eu era incapaz de emendar um livro porque é como se eles tivessem sido ditados, está a ver? Não sei explicar isto, mas é quase como uma visão. Parece a Santa Teresa de Ávila… [Risos] Mas é como se os livros me tivessem sido dados. E depois cria-se uma espécie de respeito supersticioso em relação àquilo, como se eu não tivesse o direito de mudar nada… Não sei, pelo menos dentro de mim é um processo muito estranho. E depois, é escrito sempre com muito angústia… Cada vez mais aflito… Mas não posso fazer outra coisa. Isso é outra sensação muito engraçada, a da inevitabilidade de ter que se fazer isto… Eu não gosto nada do Fernando Pessoa, acho-o um chato. Acho-o um chato, é um gajo que, como dizia a Maria Velho da Costa noutro dia… Aliás o Fernando Pessoa é um heterónimo do João Gaspar Simões, na minha opinião.

 

Era isso o que dizia a Maria Velho da Costa?

Não, isso digo eu.

 

E o que é que ela dizia?

Ela dizia que isto é um país de idiotas, em que as pessoas pensam que a tristeza é uma forma de inteligência, quando não é nada, é uma forma de estupidez! Portanto, o Pessoa é um gajo do caraças… Era isto que ela dizia… Olha, essa gosta de mim.

 

Mas há uma tristeza constante naquilo que escreve…

Tristeza, ou desespero, ou desesperança, não sei bem… Não quero falar mais disso. É feliz?

 

Eu é que estou aqui para fazer perguntas. É feliz?

Lembro-me dos domingos à tarde, quando era miúdo. Ia com o meu tio ao cinema, e perguntava-me: quando é que eu fui feliz? Lembro-me tão bem disso. Tão bem. Os domingos à tarde eram uma tristeza, uma angústia… Não era bem tristeza, era um aperto. Não sei explicar isto. Por exemplo: se uma pessoa escreve, fica melhor. Agora, nos intervalos dos livros, começa a ser uma aflição…

 

E quando ainda não escrevia?

Lembro-me de mim sempre a escrever.

 

Sim, mas quando não publicava?

Escrevia na mesma. Nem pensava em publicar. Era uma espécie de… O Dinis Machado chamava-lhe «catarse». Uma pessoa assim fica mais equilibrada. No fundo, a nossa vida é a forma que a gente arranja de fugir à depressão. Mas esta conversa está a ficar melancólica que se farta…

 

Você é que é melancólico.

Acha? Não sei… Se fizer bons livros…

 

O que é que são bons livros?

Um bom livro… Guerra e Paz, Som e Fúria, La Chartreuse [Risos]

 

Mas para si, o mais importante da vida é escrever bons livros?

Mas o que é que é o mais importante? O importante é a pessoa estar bem com ela própria.

 

E quando escreve, está?

Não, estou à rasca. [Risos] Num dia uma pessoa pensa que é péssima, noutro dia pensa que é a melhor do mundo. Não sei, sinceramente… [grande silêncio] Acho que ninguém em Portugal escreve como eu.

 

Ninguém escreve tão bem como António Lobo Antunes?

Não sei o que é escrever bem. Por esses cânones do escrever bem que ensinam no liceu, o Faulkner escrevia mal.

 

Então o que é que quer dizer quando diz que ninguém escreve como António Lobo Antunes?

Quero dizer só isso. Inteiramente e em todos os sentidos. Um dos grandes equívocos em Portugal é a literatura portuguesa. Isso não existe. Há poetas. E se nós conseguirmos juntar cinco romancistas, já é muito.

 

Então, para si, qual é o país que tem agora uma literatura?

A República Federal da Alemanha, por exemplo. Nós não temos uma literatura muito grande. Temos é muita gente a publicar porcarias.

 

Sente-se então sozinho?

Penso que estamos todos sozinhos.

 

Há uns tempos, achava que havia uma nova geração na literatura portuguesa. E citava nomes: era você próprio, Cardoso Pires, Lídia Jorge, João de Melo, Dinis Machado e Mário de Carvalho.

Era uma geração, sim. Mas hoje em dia penso mais que ela não existe. Existem algumas pessoas com talento… Na minha opinião, mas também, quem sou eu para julgar os outros?… E não me interessa pessoalizar. Há as pessoas com talento, e há as pessoas que eu admiro por isto ou por aquilo… E depois a gente tem muita tendência, como dizia o Marx, para confundir os nossos sentimentos com as nossas ideias… Pelo menos eu… Mas eu não queria fulanizar. Nem sequer falar de mim. As pessoas têm o direito de pensar o que quiserem.

 

Voltemos então ao livro: disse que queria fazer a segunda parte d’ Os Lusíadas, o decrescendo. Acha que estamos agora numa maré baixa da História?

Não, não estamos nada. Estamos muito bem. Temos um governo óptimo, não há greves. Temos grandes ministros. Noutro dia ouvi um ministro chamado Álvaro Barreto, a dizer na televisão esta frase espantosa: «Provavelmente ou, pelo menos, de certeza», a propósito de qualquer coisa. Ora um governo que tem uma pessoa que diz uma coisa destas é um governo genial. Acho isto uma frase espantosa, de génio! Não podemos pedir mais – provavelmente ou, pelo menos, de certeza. Somos felizes. Os jornalistas são muito bem pagos. Os escritores são lindamente pagos. De que é que a gente se pode queixar?

 

É por isso que continua cá?

Em Portugal? Pois. Quando quero vou a Paris de Rolls-Royce. Ou no meu jacto particular. Pronto. Estamos num ponto alto. Aderimos à CEE. Está toda a gente contente: a CGTP, a UGT. Temos uma ministra da Saúde que conseguiu que os médicos todos, da ponta direita à ponta esquerda, a amassem. Isto é uma coisa raríssima! Estamos todos na maior: a união do PS, o Adriano Moreira à frente do CDS, a maneira magistral como o PCP está a resolver os seus problemas internos… O que é que a gente pode pedir mais? Isto é um país de génios!

 

Agora é Freitas do Amaral, não é Adriano Moreira quem está à frente do CDS…

Agora é Freitas do Amaral, pois, também é óptimo. Tudo é óptimo. E depois, como tudo é bem pago, tudo funciona bem: os hospitais funcionam maravilhosamente, os jornais são maravilhosos, os actores de teatro são lindamente pagos…Não percebo como é que ainda há pessoas que têm a lata de se queixar. Os problemas estão todos resolvidos em Portugal, graças a Deus. E à Nossa Senhora de Fátima, claro.

 

Mas neste seu livro nunca fala desses aspectos exaltantes da governação de Portugal. Aliás, nunca se percebe bem em que tempo de acção se está, porque o rei Dom Manuel tem dificuldade em fazer crer na sua coroa de folha e nas suas esmeraldas de plástico…

É evidente que era impossível que isso se passasse no reinado de Dom Cavaco I, não é? Mas é uma espécie de apanhado do que se passa agora. Enfim, passa-se em vários tempos misturados. O que não é certamente é um romance histórico. Nem sequer um daqueles romances que parecem históricos mas que afinal tratam de assuntos prementes, como se usa agora. Portanto, posso garantir-lhe que cobriu vários governos amplamente democráticos.

 

Mas nunca se fixa expressamente em qualquer época. Refere apenas que houve uma revolução no reyno

Pois, porque isto é tão bom que é intemporal. Atingiu a graça de intemporalidade! [Risos] Ouça lá, isto é uma chochadeira, não vá meter lá na revista esta brincadeira toda!

 

Então fale a sério. Porque é que tem tanta dificuldade em falar a sério?

Porque são coisas pessoais. As minhas preocupações são tão individuais! Sou uma pessoa sem importância colectiva. As coisas que me preocupam ou que me apaixonam não têm importância, a não ser sob o ponto de vista da curiosidade mórbida. Aquilo de a gente portuguesmente, quando há um desastre, nos juntarmos todos para ver como é que é, na esperança de sangue, mortos…Só me interessa que as pessoas se interessem pelos livros.

 

Mas quando, aos quinze anos, escreveu ao Céline, não lhe interessava saber o que ele pensava?

Não, escrevi-lhe só para lhe pedir uma fotografia.

 

 

Revista Ler

Primavera de 1988

 

[*] O Regresso das Caravelas era o título original escolhido para o romance que veio a chamar-se As Naus. O escritor viu-se obrigado a mudar pois alguém já tinha registado o título O Regresso das Caravelas.

Conversas com Letras – Entrevistas com Escritores (*)

Nas coisas que diz, consegue, como poucos, misturar o tom manso do afecto com o gume afiado da ironia. Sabe que há quem goste muito dos seus livros e quem goste pouco, porque o seu modo de escrever e a imagem que de si próprio passou a dar aos outros não consentem neutralidade ou indiferença.

 

Uma década bastou para o tornar um dos nomes mais importantes da ficção portuguesa contemporânea, com vários prémios ganhos no País e no estrangeiro.

 

Confessando-se poeta frustrado, revelou em primeira mão, nesta entrevista, que acaba de se estrear como autor de textos de canções num LP de música de inspiração africana em que intervém o cantor e compositor Vitorino.

 

Não ignora que o que diz é frequentemente incómodo para alguns e polémico para muitos outros. A experiência de médico psiquiatra, profissão que continua a exercer no Hospital Miguel Bombarda, talvez o tenha ajudado a conhecer bem as reacções que é capaz de desencadear.

 

Goste-se ou não da sua obra, é forçoso reconhecer que escreveu alguns dos melhores livros portugueses dos últimos anos. O que agora acaba de ser publicado [Tratado das Paixões da Alma], com um título belíssimo que remete para os grandes textos da filosofia, vai de novo confrontá-lo com o público e com a crítica. Assume-o como uma história de paixões e de almas, na qual se joga a força inteira dos sentimentos na sociedade portuguesa contemporânea.

 

Esteve para ter outros títulos antes daquele com que agora surge nos escaparates das livrarias.

 

Para António Lobo Antunes, que gosta de falar dos amigos que a literatura o ajudou a fazer e a consolidar, à publicação de cada livro segue-se um «tempo vazio», no qual podem ou não fermentar novas ideias e novos projectos de escrita. Uma coisa é certa: na sua cabeça, enquanto vai escrevendo, só cabe um livro de cada vez. A coabitação de projectos e de esboços é experiência que não conhece e que, do seu ponto de vista, é até um pouco estranha e difícil de explicar.

 

Mesmo quando parece apostar numa toada defensiva, dá-se a conhecer muito mais do que pode pensar-se, porque não sabe nem quer ocultar sentimentos, antipatias, preferências, afectos e alguns ressentimentos. Da soma de todas essas facetas pode resultar um retrato de corpo inteiro que os seus livros, por serem obras de ficção, não têm forçosamente de confirmar.

 

Entrevistá-lo é sempre uma experiência diferente. O pretexto para esta conversa foi a saída de um novo livro, mas falou-se sobretudo do homem e da sua relação com a escrita e com o mundo dos outros, dos que escrevem e dos que só lêem.

 

«Como todos os meus livros – revela – este teve vários títulos antes de se fixar no que agora tem. É um título cartesiano, que se liga a livros de Descartes e Leibniz. É também, em parte, uma homenagem a eles. É um livro acerca da paixão e dos vários tipos de paixão. A história trata, na minha ideia, das várias formas de paixão de alma que existem; da paixão, do ódio, do afecto e da amizade. Os sentimentos nunca são quimicamente puros. São sempre muito contraditório dentro de nós. Os sentimentos têm sido um tema central no nosso país».

 

No princípio, António Lobo Antunes queria situar as personagens, os sentimentos e a acção no campo da extrema-esquerda em Portugal, «mas depois a história foi-se desviando para a relação desses dois homens e das pessoas que se cruzam na vida deles. É afinal a relação de dois homens entre eles, com o mundo e com os outros, tudo isto no Portugal de hoje».

 

O escritor tem consciência de que «vivemos numa época estranha em que as poeiras levam tempo a assentar» e quis que o seu livro também levasse esse facto em consideração.

Amigo de poetas e de prosadores, está em condições de afirmar que «a nossa geração está a falar muito de Portugal».

 

Neste mundo das letras tão pouco imune a fenómenos como a inveja, a intriga e o ressentimento acumulado, António Lobo Antunes tem a preocupação de deixar claro o seguinte:

 

«Não tenho razões de queixa de nenhum escritor em Portugal. Tem sido uma relação exemplar. Há aspectos nessa relação que às vezes até me deixam bastante comovido. Todos estamos a fazer coisas diferentes e acho que essa diversidade é muito a nossa riqueza. Tenho recebido de outros escritores provas de amizade e de camaradagem verdadeiramente exemplares. Dou o exemplo da Olga Gonçalves que teve a elegância de me mandar uma crítica a um livro meu saída num jornal dos Estados Unidos. Neste meio acabamos por ter amigos bons. Os inimigos não prestam, porque acham, no fundo, que são maus escritores. Nunca senti inveja e competição da parte dos meus camaradas de escrita».

 

Mesmo temendo cair em pecado de omissão, fala de amigos escritores cujas obras admira e cujo exemplo não perde de vista: José Cardoso Pires, Agustina Bessa-Luís, João de Melo, João Miguel Fernandes Jorge, Lídia Jorge, Mário Cláudio, Pedro Tamen, Egito Gonçalves e Eugénio de Andrade. Aqui fica o registo dos nomes, tal como foram mencionados, no tom afectuoso da estima e da admiração.

 

«Acho que os escritores percebem muito melhor o que escrevemos que os críticos. Os escritores têm, afinal, a mesma humildade dos leitores comuns. Os críticos raramente entendem o nosso trabalho. O Jorge Amado, numa carta que me mandou sobre o Fado Alexandrino dizia, mais ou menos, que não tinha nem vocação nem pretensão de ser crítico, mas que distinguia o bom do ruim».

 

Dito isto, Lobo Antunes não hesita em afirmar que «quem me ajudou sempre foram os escritores; nunca os críticos». E vai mais longe, sempre com as palavras directas de quem não quer deixar pelo eufemismo aquilo que pensa.

 

«Aprendi sempre mais com escritores como o José Cardoso Pires ou a Maria Velho da Costa, do que com aqueles que têm escrito sobre os meus livros. Aprendi sempre mais com pessoas como o Pedro Tamen, que além de ser um grande poeta, de quem sei poemas de cor, é um homem de uma generosidade enorme e de uma grande importância cultural. Há também o caso de um poeta como o Egito Gonçalves, de quem também sei poemas de cor, que tem realizado um trabalho excepcional com os poetas novos na Limiar. E, contudo, são pessoas que não costumam ser reconhecidas por aquilo que valem».

 

Com a preocupação de não omitir nomes nem obras, faz uma alusão especial a Alexandre O’Neill e a Manuel da Fonseca, dizendo sobre o segundo que «é uma das pessoas mais fascinantes que eu conheci e da qual pouco se fala». Depois, fica o lamento e a condenação:

 

«Nós, que somos um país tão pequeno, não nos podemos dar ao luxo de esquecer poetas como eles e dificilmente lhes poderemos agradecer tudo o que fizeram».

 

Tem o cuidado de mencionar o trabalho de Pedro Tamen, com o Círculo de Poesia, da extinta Moraes, que «até ajudou a divulgar poetas mortos como o Cristovam Pavia».

 

«Tenho muito orgulho em ter como amigos poetas assim enfatiza que, com alguns dos seus poemas, me têm até ajudado a vencer algumas crises de amor».

 

É conhecida a relação privilegiada que António Lobo Antunes tem com os poetas e com a poesia. Explica de onde lhe vem essa afinidade e essa paixão:

 

«Sou um poeta frustrado. Comecei por escrever poesia. Estreei-me aos 14 anos no Diário Popular e por volta dos 20 foi muito penoso descobrir que não tinha talento para ser poeta e descobrir, ao mesmo tempo, que não podia viver sem a escrita. Foi assim que comecei a escrever ficção. Continuo hoje a ser um grande leitor de poesia e se tenho inveja de alguns poetas é porque gostava de escrever como eles. Nem é bem inveja, é só um desejo de escrever também assim.»

 

Em parêntesis da conversa ficam fragmentos de poemas belíssimos citados de cor. Pertencem todos a poetas que admira e que o têm acompanhado, com a voz secreta e cintilante da poesia, ao longo da vida.

 

E no diálogo estão sempre presentes as palavras «afecto» e «amizade», que suscitam ao escritor este comentário:

 

«Temos medo de dizer de homem para homem “gosto de ti”, com medo de que isso seja confundido com homossexualidade».

 

Dos académicos, dos universitários, Lobo Antunes confessa gostar pouco, mas faz uma excepção:

 

«Talvez a única pessoa universitária que eu admiro seja o Arnaldo Saraiva, que é também um poeta, e a quem Portugal deve a grande divulgação do Carlos Drummond de Andrade».

 

Apesar de falar insistentemente de amizade e de afecto e de ter a coragem de dar nomes às pessoas e às obras de que gosta, Lobo Antunes dá, por vezes, a ideia de que se sente mal amado.

 

«Em relação aos leitores e aos escritores não sou um mal amado. Em relação aos críticos, sim. Acho que sou um bom alvo. É fácil dizer bem de outras pessoas. E é curioso que muitos dos que dizem mal dos meus livros tenham começado precisamente a escrever à Lobo Antunes. O Jorge de Sena fala muito bem disto: temos a mania de confundir as pessoas com os livros. Acho que marca pontos a meu favor o facto de as pessoas terem uma relação forte, por vezes violenta, com os meus livros. Os estrangeiros, talvez por não estarem envolvidos nesta espécie de bidé em que estamos metidos, vêem-nos de outras maneira. Alguns escritores que são licenciados aqui, não têm a mínima importância no estrangeiro. Depois há as modas impostas por pessoas que dominam os jornais através de amizades ou de outras relações que desconheço».

 

O autor de Memória de Elefante tem a noção de que hoje, ainda «a quente» e sem a indispensável distanciação crítica que só o tempo é capaz de dar, «é muito difícil distinguir o mau do bom». Mais:

 

«É muito difícil – afirma – dizer ao certo o que é que vai ficar. Todos acabamos com a boca cheia de terra e queremos deixar as coisas que nos perpetuam. Fiz uma filha antes de embarcar para a guerra em África, com a ideia de que me perpetuaria se morresse. Com os livros é um bocado a mesma coisa. O nosso desejo é sempre sermos lidos depois de mortos».

 

Lobo Antunes aproveita, num tom que é, ao mesmo tempo, mordaz e lapidar, para dizer como costumamos reagir a estas coisas da posteridade.

 

«O sonho de todos os escritores portugueses é obterem o reconhecimento, é descerem a Avenida da Liberdade em carro aberto a acenar à multidão. Isso é infinitamente desculpável, porque sofremos muito quando escrevemos». Cita a esse propósito uma frase de Graham Greene, que considera ser um grande escritor, a quem o Nobel, com plena justiça devia ter sido dado.

 

Em onze anos, António Lobo Antunes construiu uma obra vasta e complexa, polémica e em muitos aspectos inovadora, que continua a obter largo reconhecimento internacional.

 

«Estou há onze anos a publicar mas há muito mais tempo a escrever. Estes onze anos permitiram, de facto, a minha profissionalização. Para isso contribuíram as vendas em Portugal e no estrangeiro e um agente americano que trabalha comigo há anos e que conheci através do escritor brasileiro Márcio de Souza, que lhe deixou um exemplar de Os Cus de Judas em Nova Iorque. Era uma altura em que praticamente não havia portugueses contemporâneos traduzidos no estrangeiro, com excepção do Namora, nalgumas pequenas editoras. Tudo isto alterou a minha vida no sentido de passar a ganhar menos, porque ganharia muito mais como médico. O Jorge Amado dizia-me, há tempos, que conhecia muitos editores ricos, mas escritores não. Gastamos muito em impostos e pagamos tudo aquilo que o agente investe em nós. Depois tive a sorte de ter os tradutores que gostava de ter. Ter tradutores bons é muito importante. Quando Blaise Cendrars traduziu A Selva, de Ferreira de Castro, fez dele um grande livro. Tudo isto foi conquistado muito lentamente. E também houve a sorte, que é um factor que pesa nestas coisas».

 

Para Lobo Antunes os melhores críticos do trabalho dos escritores de ficção narrativa talvez sejam os poetas. Recorda que Alexandre O’Neill afirmava que «escrever é como viver», dizendo tudo à maneira de quem deixa quase nada dito. São assim os poetas e as suas sínteses.

 

«Nunca tive tanto sucesso no estrangeiro como com a tradução de As Naus – refere –, que a esquerda atacou por achar que estava a meter-me com a descolonização e a direita por pensar que estava a denegrir os seus heróis. Nunca tive críticas tão hiperbólicas como as suscitadas por esse livro no estrangeiro».

 

Mantendo com Portugal uma típica e cíclica relação de amor-desamor, Lobo Antunes confessa não ter «mais vontade de ir embora». E revela:

 

«Tive recentemente um convite do governo alemão para me ir embora daqui, com casa e dinheiro, mesmo sem escrever. Mas nem perante essa hipótese fui capaz de partir. Se escrevo em Portugal, com palavras portuguesas, é aqui que tenho de estar».

 

E é aqui que surgem e se acumulam sempre novas experiências: as da escrita e as dos sentimentos.

 

«Poeta frustrado que sou, andei agora a fazer letras de canções para um disco de música africana. É um disco com o Vitorino. São tudo textos meus».

 

Falando do que é o trabalho oficinal do escritor, refere a dificuldade que os prosadores em Portugal costumam ter quando constroem diálogos.

 

«Neste século, entre os portugueses, quem melhor faz diálogos é o Cardoso Pires, sobretudo nos contos. Eu tentei arranjar uma espécie de monólogos sobrepostos. É uma dificuldade minha, a de fazer diálogos. Como sou um lírico, faço tudo carregado de autobiografia. Às vezes o que as pessoas acham que é bom tem a ver com estratagemas nossos. No fundo não é uma técnica, é uma defesa das nossas dificuldades».

 

Essas dificuldades são diariamente enfrentadas, num trabalho regular e sofrido a que o escritor não foge por o achar essencial, mesmo quando é doloroso e desgastante.

 

«Todos os dias escrevo, mesmo agora que há o vazio provocado pela saída de um novo livro. Nunca percebi como é que há escritores capazes de terem vários livros ao mesmo tempo dentro da cabeça. Como não sou Balzac, só tenho aquele que estou a escrever. O que sinto, quando escrevo, é a distância entre as emoções o que se sente já a frio. Por isso, muitas vezes o resultado final do livro acaba por ser frustrante. Por vezes quando vamos visitar os livros que escrevemos, sentimos que há defeitos enormes».

 

E as ideias para um novo livro como surgem?

 

«Começam a cristalizar-se pouco a pouco. Chega a ser angustiante. Às vezes há anos de intervalo. As minhas filhas dizem que sou um chato porque, quando escrevo, só escrevo, e quando não escrevo estou só a olhar para as paredes. Para um próximo livro já tive umas ideias mas, como é costume dizer-se, quando a esmola é grande o pobre desconfia. Isso das ideias é complicado. É como o cão que esconde um osso e anda depois a farejar para descobrir onde o deixou, a ver se o encontra, sem saber se chegará alguma vez a encontrá-lo. No fundo, o que eu gostava era de escrever poesia se tivesse talento para isso».

 

 

27 de Novembro de 1990

 

Transcrito por Gonçalo Mira de:

LETRIA, José Jorge, Conversas com Letras – Entrevistas com Escritores, Editorial Escritor, 1995

(*) Nota: O livro é composto por entrevistas feitas por José Jorge Letria publicadas no Jornal de Letras e nas revistas Autores e Tempo Livre. Não existe, na entrevista a Lobo Antunes, indicação em qual destas publicações foi originalmente publicada.

O Manual dos Inquisidores

Ainda O Manual dos Inquisidores (Dom Quixote) frequentava os primeiros lugares das listas de vendas nas livrarias, já António Lobo Antunes terminava o seu novíssimo romance – uma história sobre África, tendo como cenário Malanje, em Angola.

 

 

Com O Manual dos Inquisidores regressa a Portugal, volta a eleger Portugal como um tema de romance… Claro que há uma família que se transforma em personagem fundamental, quase saga, mas parece-me que este livro é parte de um projecto mais vasto, uma tetralogia sobre um tema que já quase não está na moda: Portugal.

Sim, mas esse livro já está pronto há dois anos, e, entretanto, estou neste momento a acabar um novo. Bom, já está mesmo acabado e inclui-se nessa série de quatro livros sobre o poder e sobre o exercício do poder em Portugal. Portanto, O Manual dos Inquisidores seria o primeiro. Há este, novo, que já está pronto, e, quanto aos outros dois, vamos a ver…

 

Como é que lhe apareceu a ideia central do Manual?

Um livro começa sempre por um clique e neste, no Manual, foi muito curioso, porque teve a ver com uma frase. Aliás, antes disso, tenho que dizer que devo um pouco livro ao João [João Lobo Antunes, irmão do escritor, neurocirurgião] porque, há uns três ou quatro anos, contou-me uma história de um senhor, um grande solteirão, ou viúvo, já não sei, que dizia, em relação às mulheres: «Eu faço tudo o que elas querem, mas nunca tiro o chapéu da cabeça». Aquilo ficou-me cá dentro. Esta frase foi a primeira coisa que eu tive do livro, é uma frase espantosa. É engraçado porque, normalmente, começo por um plano do livro, com personagens, cenários e tal, mas aqui o clique, esse tal clique que é necessário a todo o livro, foi a frase. Creio que era um proprietário de uma empresa de vinhos, uma marca de vinhos muito conhecida. O livro, propriamente dito, começou com a personagem do ministro, só depois aparecendo os outros personagens da família. Quando comecei a escrever já tinha, como de costume, as várias partes e as vozes principais, mas esse personagem era fascinante. Tal como é fascinante entrar nesse universo das grandes famílias, conhecer as suas histórias…

 

Você opta por um narrador invisível, escritor, que parece munido de um gravador para recolher depoimentos dos personagens. Isso facilitou-lhe as coisas?

É uma técnica que tenho vindo a aperfeiçoar, porque eu estava descontente com os primeiros livros e pensei que uma técnica mais polifónica me permitiria que os personagens se reflectissem melhor na própria história. Eles é que contam, num livro. E o método usado permite ir mais fundo no que diz respeito à caracterização das pessoas. E até ao nível da própria escrita, que é fundamental…

 

Por que é que diz que os outros livros, os primeiros, são livros de aprendiz?

O Memória de Elefante é, claramente, um livro de aprendiz, Os Cus de Judas é um livro binário, com aquele jogo entre mulher-guerra… E, depois, Conhecimento do Inferno, que é provavelmente o mais fraco deles todos, é onde começam a aparecer, ainda que timidamente, todos os processos que eu depois comecei a tentar desenvolver melhor nos livros a seguir. Mas, se eu voltasse atrás, teria começado a publicar com Explicação dos Pássaros.

 

É como se estivesse a renegar livros seus…

Eu poderia ter esperado mais um pouco, sabe? Aliás, esperei até aos trinta e seis anos para publicar um livro. Nunca tinha publicado e também podia ter continuado a viver sem publicar. Publicar não era fundamental, escrever é que sempre escrevi, mas, se calhar, deveria ter continuado a esperar e fazer como fazia até ao Memória de Elefante, que era escrever livros e deitá-los fora.

 

Quantos é que deitou fora?

Muitos, imensos. Comecei a escrever com treze anos. Na adolescência já tinha uma vasta «obra completa», mas depois chegava ao quintal dos meus pais, onde havia uma figueira, e queimava aquilo tudo, porque tinha a consciência de não ter encontrado uma voz, em primeiro lugar, uma maneira de escrever, um modo de contar, e depois havia sempre uma grande distância entre a emoção sentida e o pobre resultado que ficava escrito, tão mau como quando, em muito miúdo, comecei por fazer poesia de muito má qualidade. A distância era muito, muito grande, e o meu problema era como encurtar essa distância…

 

Era uma família de gente precoce: o seu irmão João tinha um programa de televisão aos quinze anos; você, aos treze anos, escrevia romances…

Nós somos seis rapazes e tivemos a sorte de os meus pais serem extremamente estimulantes, no sentido de nos fazerem interessar por tudo, desde cálculo integral até literatura. Havia uma enorme curiosidade intelectual por parte do meu pai, sobretudo, mas também da minha mãe. A minha mãe é das raras mulheres que eu conheço que lia Proust. Lembro-me de, aos catorze anos, o meu pai dar a ler a Voyage au Bout de La Nuit. Falávamos muito de livros, de arte, de coisas assim. Talvez por na família haver uma grande contenção e uma grande austeridade, ainda hoje falo com o meu pai mais de literatura do que dos nossos sentimentos pessoais… Sou capaz de falar de emoções e sentimentos com os meus amigos, mas, com os meus irmãos, embora goste muito deles, e com os meus pais, há um enorme pudor, não sei se estão bem afectivamente, em que partido é que eles votam. Bom, posso presumir, mas não sei com rigor… Portanto, a nossa relação fazia-se através de livros, das ciências, da física… Sobretudo com o João, porque vivíamos dois a dois, em cada quarto, e o João era o meu companheiro. Íamos descobrindo as coisas ao mesmo tempo, mas, sem dúvida, foram os nossos pais que nos incitaram mais nessa descoberta.

 

E a escolha da medicina foi também por razões familiares?

Na verdade, nunca quis ser médico. Mas eu era o mais velho e, naquela altura, quando se chegava ao quinto ano, tínhamos de escolher entre ciências e letras. Ora, eu tinha treze anos – o meu pai perguntou-me o que é que eu queria fazer, eu disse que queria ser escritor e, portanto, queria ir, naturalmente, para a Faculdade de Letras. Ele tomou isso a sério, nem sequer fez troça, que era o que eu teria feito se uma filha minha me dissesse que queria ir para pintura ou escultura, ou coisa parecida. Mas lembro-me de o meu pai me dizer, na altura, que, se eu queria ser escritor, o melhor seria tirar um curso técnico, que isso me daria uma preparação melhor. Eu penso que ele estava preocupado com a ideia de eu ter de ser professor de liceu e que tivesse uma vida mais ou menos difícil e triste, e achava que a medicina poderia ser uma via melhor para mim, além de que ele tinha alguns amigos médicos que eram pessoas de grande qualidade, como o Miller Guerra, um homem chamado Furillo de Andrade, que ainda é vivo, e é o único português que tem uma doença com o nome dele. Às vezes telefonava às sete da manhã, o meu pai atravessava a casa, desesperado, a avisar: «É o Furillo! É o Furillo!». Eu penso que essas pessoas também tiveram influência. Olhe, a biblioteca do professor Miller Guerra era enorme, colossal, tinha muitos livros, e eu ia almoçar a casa dele (era amigo de um dos filhos dele) e ficava a olhar para aquilo com ar guloso. Os médicos que eu conhecia interessavam-se todos pela literatura, pela pintura, pela música. Não eram, nem tinham nada a ver com os engenheiros da medicina que a gente vê hoje em dia, os rapazes e as raparigas que acabam o curso agora, e, portanto, embora não gostasse do curso, lá fui matricular-me em medicina. E, de facto, não gostei nada do curso até ao fim. Não estudava nada, estive três anos no primeiro ano. Entrei para a Faculdade com dezasseis anos, dediquei esse ano a escrever, nem fiz exame nenhum. No segundo ano, fui a exame sem saber literalmente nada, o que foi muito aborrecido porque o professor escreveu uma carta ao meu pai a dizer que «o seu filho veio aqui, não sabia nada, tive que o reprovar», e o meu pai apareceu-me com a carta, com um ar muito triste… A partir daí, pronto, não reprovei mais. Também, rapidamente, descobri que não era difícil passar na faculdade. E tive a sorte de haver alguns mestres excepcionais, o professor Cid dos Santos, pai do pintor Reynaldo dos Santos, que era um homem de uma qualidade excepcional e tocava piano no consultório, ou outros, como Celestino da Costa, Juvenal Esteves. Eram homens como eu penso que já não existem. Lembro-me dos professores de psiquiatria, como o Barahona Fernandes, que tinha uma enorme biblioteca, impressionante – ele era casado com a filha do maestro Vianna da Mota e tinha não só a sua enorme biblioteca, mas também a biblioteca de Vianna da Mota. E foi assim que acabei de tirar o curso de medicina… No meio de livros…

 

Você estava fascinado pelo mundo dos médicos, mais do que pelo mundo da medicina…

Por esses médicos que, de facto, eram figuras excepcionais. Julgo que não existem hoje pessoas dessa craveira intelectual e moral…

 

Como é você como médico? Quais são os seus tiques?

Eu já não sou médico, atenção…No início, o que me chocava mais era o poder médico, quer dizer, uma pessoa vai ao hospital e tanto podia levar uma pastilha como ficar ali para ser operado… O poder médico assustava-me muito. Uma pessoa tanto pode levar uma consulta, como uma palmada nas costas, como um electrochoque, e as pessoas entregam-se muito confiadamente nas mãos de um médico. Lem­bro-me de estar no internato geral, e aparecia uma pessoa com uma dor na barriga em Santa Maria. Operava-se o apêndice para fazer curriculum, mas, muitas vezes, era uma cólica ovárica ou outra coisa qualquer… Portanto, essa sensação de poder, para mim, era muito amedrontante, era um poder discricionário, indiscutível e indiscutido. Depois, percebi que a gente só diagnostica aquilo que conhece, por muita intuição que tenha. Hipócrates tinha uma frase muito bonita acerca da medicina: a arte é longa, a vida é breve, a experiência é enganadora, e o juízo difícil. Isto aplica-se a qualquer arte, está claro. Para ser um médico honesto, tinha de saber medicina, não era justo uma pessoa morrer por um erro de diagnóstico. Quando já estava no internato de psiquiatria do hospital Miguel Bombarda, apareceu um rapaz de trinta e dois anos com um delírio megalómano a quem eu fiz um diagnóstico de psicose paranóica, mas, de facto, ele tinha uma sífilis, aquilo era um delírio mega­lómano típico da sífilis. Bom, ele morre, e levado para o Instituto de Medicina Legal com o diagnóstico de psicose paranóica e, na autópsia, descobre-se que é sífilis. O director do hospital, na altura, mandou-me chamar e disse: «Este doente morreu por sua causa, você fez o diagnóstico mal feito, era uma coisa que se podia curar com penicilina…» Este foi o episódio mais dramático que eu tive. Quando fui para África, ainda que contasse com pouca experiência cirúrgica, tinha de fazer amputações, tinha que fazer essas coi­sas tramadas que há a fazer em tempo de guerra… Então, levava o tratado de cirurgia, o furriel enfermeiro, que não podia ver sangue, ia-me lendo aquilo tudo, os procedimentos, e eu ia operando. Felizmente nunca nos morreu ninguém assim. Portanto, a minha rela­ção com a medicina era essa. Melhor, servia, em primeiro lugar, para ganhar dinheiro, porque, entretanto, tinha uma filha, depois tive duas filhas, e trabalhava muito. Depois, quando voltei de África, fazia bancos em vários sítios porque ganhava muito pouco dinheiro como interno e, depois, chegava a casa e continuava a escrever. Mas, mesmo em Angola, mesmo debaixo de fogo, mesmo nos abrigos, eu continuava a escrever sempre. Por um lado, funcionava como anti depressivo e, por outro, tinha a sorte de estar com o Ernesto Melo Antunes, que era o meu capitão. Recebíamos imensos livros, líamos muitos livros. O relacionamento com o Melo Antunes foi decisivo para mim e é uma amizade que ainda hoje dura…

 

E a quem dedica este livro. Mas ainda não respondeu…

Em relação à medicina? Olhe, tem a ver com o interesse de cada um. Veja o caso do João: a medicina é o interesse principal da vida dele, tal como a arquitectura é do Pedro, como ser jurista é o interesse principal do Miguel, como ser diplomata é do Manuel, a neurologia pediátrica do Nuno… O meu foi sempre a literatura, a medici­na era uma espécie de segunda profissão, era o que me dava dinheiro… Quando aparece o Memória de Elefante é que já deixou de ser tanto, porque o livro vendeu muito e estive para abandonar o trabalho no hospital. Só que, entretanto, houve uns problemas com o editor, fomos para tribunal, houve dinheiro que não pagou, etc.

 

Qual é o seu balanço desses primeiros anos de escritor?

É muito estranho. O Daniel Sampaio andou com o livro por todos os editores, e foi recusado em todo o lado. Até que eu fui de férias com as miúdas e, quando regressei, estava o livro nas montras das livrarias. Isto foi em 1979, o livro já tinha feito duas ou três edições durante o Verão… Foi tudo muito estranho e muito rápido. No lançamento do livro, nas instalações da editora, que era ali na Rua Jorge Ferreira de Vasconcelos, estavam dez pessoas. Mas ninguém ligado a escrita. Estavam alguns amigos meus, amigos do editor e uns copos de vinho branco, uma coisa de pequena aldeia. Lembro-me de ter chegado, depois das férias, e de ver o meu nome nas montras…

 

Qual foi a sua reacção?

Um misto de vergonha e contentamento. Logo a seguir, saiu Os Cus de Judas e, depois, foi esta bola de neve… Em 1980, recebi uma carta de um agente e não respondi. Pensei que era uma piada e não respondi, pronto. Depois começaram as traduções, por aí fora, e é ainda o mesmo agente. Foi como Ihe disse, tudo muito rápido. Na altura das recusas do Memória de Elefante, já estava pronto Os Cus de Judas e já estava a escrever o terceiro. As editoras são muito cruéis para as pessoas que começam, porque nem sequer respondiam, e eu não tive coragem para insistir. Não conhecia nenhum escritor, nem nunca tive a coragem de mandar o romance a alguém só para saber a opinião. Tal como agora acontece em relação a mim. Recebo muitos originais, tenho a cómoda cheia… Mas eu não tinha coragem. E, felizmente, só comecei a conhecer escritores depois de os livros saírem. Nessa altura não conhecia ninguém do mundo literário, e lembro-me de que ia, ainda adolescente, espreitar os génios para os lados do Chiado: o Aquilino, o Ferreira de Castro… Havia uma cervejaria ao lado do Jardim Zoológico, chamada Coral, onde comiam a Natália Correia, o David Mourão-Ferreira, o Namora… Havia uma tertúlia na Sá da Costa, outra na Bertrand, e eu ia lá e fingia que comprava livros, mas a intenção era só a de olhar para eles… Lembro-me de ver o Namora, quando descia a Baixa, e da admiração que sentia por ele. Aos quinze anos, a gente gosta de livros muito maus. Ainda hoje gosto de livros maus, mas houve uma altura em que gostava muito mais…

 

De que livros maus gostava?

Lia tudo, como continuo a ler tudo… É aborrecido pessoalizar, mas você sabe, são aqueles romances que a gente lia aos quinze ou dezasseis anos e que agora… Se chegar a feira do livro e vir os livros do Namora, que era um escritor com imenso sucesso nos anos cinquenta, a cem escudos ou pouco mais e ninguém lhes pegar, é um bocado chocante… Mas, na altura, para mim, o Domingo à Tarde, que descobri com o João, ou os Retalhos da Vida de um Médico eram coisas de primeira linha. Achava esses livros uma maravilha, contra a opinião do meu pai, que achava aquilo tudo muito mau. E, como contrapartida, dava-me a ler os escritores favoritos dele, os grandes russos, alguns bons franceses, os ingleses, por aí fora…

 

O seu pai exerceu uma função determinante na sua formação, inclusive até na literária…

Isso acontece com todos nós, sobretudo através do exemplo. Não tanto através de ordens, conselhos ou opiniões, mas sobretudo através do exemplo. Ele é, realmente, um homem de uma grande visão, de superior inteligência, de grande sensibilidade…

 

Você disse, uma vez, que o seu pai não tinha gostado do Memória de Elefante

Na altura mostrei-lhe o livro, e ele disse: «É um livro de principiante». E tinha toda a razão. Depois, estranhamente, gostou de Os Cus de Judas. Quando voltámos a falar do assunto, vi que tinha gostado do Fado Alexandrino que, aliás, tinha nascido de um desafio lançado pelo meu pai. Ele dizia que eu só seria um escritor quando escrevesse um romance de peso, com muitas páginas, a sério… Escrevi parte desse romance em Nova Iorque, onde estava com o João, no intervalo do basquetebol, que é um espectáculo deslumbrante. À noite, íamos ver os jogos e, durante o dia, ficava em casa a escrever. Ele tinha uma casa muito agradável, com uns esquilos no jardim e uma varanda onde tomávamos chá. Havia também uma criada espanhola… O João ia para o hospital, e eu ficava a trabalhar nesse livro. Nessa altura, já tinham saído algumas traduções e a primeira do Fado foi na Random House nos EUA, justamente. Depressa me apercebi de que, conquistando o eixo Nova lorque-Berlim, por exemplo, o trabalho de divulgação no estrangeiro fica muito facilitado. Não calculava que a crítica alemã tivesse tanta importância na Europa, muito mais do que a francesa… A crítica alemã é decisiva, não só nos países do Leste europeu, como para os países nórdicos…

 

Houve, nessa matéria, alguma estratégia deliberada da sua parte?

Nunca tive. Da minha parte, não. Se alguém teve, foi o agente. Mas tam­bém, de início, ele andava com os livros pelas editoras, e ninguém os queria… Depois, em 1981, salvo erro, saiu uma edição norte-americana, depois saiu uma francesa, e depois foi um pouco uma bola de neve… E tive a sorte de As Naus ter sido publicado na revista da Universidade de Nova Iorque, o que foi muito importante para mim, mas, de facto, parece-me, com as conversas que vou tendo com os editores, que a Alemanha é o país-chave da Europa… E os jornais alemães têm óptimos suplementos literários, excelentes, bem feitos, as criticas são bem feitas… Não é como as pessoas que escrevem sobre livros em Por­tugal… Isto é muito pequeno e há muita inveja, há má-fé e há cobiça, tenho visto classificar livros que me parecem bons no fundo do poço e tenho visto pôr nas nuvens livros que não me parecem grande coisa…

 

Dê um exemplo…

É sempre maçador dar exemplos… Da mesma forma que o Namora era considerado um génio nos anos cinquenta, têm aparecido outras pessoas depois… Reparou que, em todos os séculos, havia um escritor melhor do que o Camões? Olhe, o Tomás Ribeiro no século XIX, o desembargador Gabriel Ferreira de Castro no século XVIII… Todos considerados melhores do que ele! Mas acabaram por passar, e o Camões fica! É como o Pessoa, que me parece, apesar de tudo, melhor que o Tomás Ribeiro!

 

Você disse logo em 1992, numa entrevista, que Ihe ‘deram pancada nos livros’ e que os seus romances nunca tiveram grande recepção em Portugal senão depois de terem começado as traduções no estrangeiro. Acha que, em Portu­gal, não reconhecem a sua importância como romancista? Ou acha que a opinião da crítica é sempre marcada por invejas?

Ao princípio, ficava magoado. Agora, não. Agora, às vezes, quando as críticas são elogiosas em Portugal, dá-me a sensação que os defeitos encontrados não são esses e que as qualidades apontadas também não são essas. É que, muitas vezes, a gente acha qualidades defeitos disfarçados… Já reparou? Defeitos mais ou menos maquilhados… depois, a gente promove-os a qualidades quando não sabe da coisa literária. O Picasso dizia que a pintura se aprende como o chinês. Conheço uma rapariga que acabou o curso de jornalismo e foi para crítica de artes plásticas nessas revistas de senhoras… É impossível! Não sabem! Muitas vezes há até pessoas com uma intuição extraordinária ou só muito inteligentes, mas é muito difícil ser um bom crítico antes dos trinta e tal anos, como é difícil escrever um bom romance antes dessa idade. É preciso ter vivido primeiro, do meu ponto de vista, e, muitas vezes, põem-se meninos e meninas de vinte anos a escrever críticas. E há outros que também escrevem romances. É muito raro aparecerem bons romances antes dos trinta anos, muito raro. Um tipo só pode fazer uma coisa de jeito depois de ter passado pelas coisas. Se não viveu, os livros até podem estar ‘tecnologicamente’ correctos, mas não há ali mais nada. A experiência de vida cada vez mais me parece fundamental…

 

E quais são as experiências de vi­da mais marcantes para si?

Tudo. Lembro-me da tuberculose que tive quando era pequenino. Eu estava deitado na cama, e as pessoas estavam em pé, à minha volta. Era muito estranho, mas isso marcou-me. Antes tive uma meningite, mas dessa não me lembro. Também tive a sorte de ter uma infância muito boa, passada em Benfica que, na altura, era um microcosmos das várias classes sociais, tudo aquilo misturado, larguinhos, pracinhas. Agora nada disso existe… Mas lembro-me de ir buscar o leite todos os dias. Leite fresco, a sério… Havia um investimento na cultura e no desporto, e nós, lá em casa, chegámos a jogar no Benfica. Isto foi há muito tempo, eu tinha quinze anos, e o João a caminho — foi um dirigente do Benfica a casa do meu pai oferecer-nos, na altura, quinhentos escudos, ou lá o que era, para nós nos transferirmos para o Benfica. Imagine que, já nesta altura, e naquela modalidade sem importância nenhuma, se pagava dinheiro para os miúdos jogarem. Eu lembro-me de, um dia, nos balneários, estar a ver fotografias das várias equipas e de haver uma em que estava o meu pai com uma camisa verde por baixo da camisa do Benfica. Perguntei-lhe: «Porquê a camisa verde debaixo da outra?» E ele disse: «Sei lá quem é que lavava as camisolas!» Lembro-me perfeitamente desta frase.

 

Qual era a sua modalidade no Benfica?

Hóquei em patins. Começámos a patinar muito cedo, porque íamos para o Jardim Zoológico onde estava aquele senhor preto todos os domingos, havia aquelas meninas todas vestidas de branco, pareciam anjos, davam piruetas debaixo daquelas árvores…

 

Como é que aparece a literatura no meio disso tudo?

De uma forma muito engraçada, porque eu chegava dos treinos e ia ler e escrever. Em parte às escondidas, para não pensarem que eu não estava a estudar. Ainda hoje tenho esse hábito, por exemplo, que é o de esconder o que estou a fazer… Ainda escrevo, como nessa altura, em blocos pequeninos. Ora, quando ouvia passos no corredor, mudava a ordem das coisas que eu tinha à minha frente, livros de estudo e essa trapalhada toda, e punha o bloquinho em baixo, para os meus pais pensarem que eu estava a estudar. Entretanto, como eu perdi esses anos todos na faculdade, o João, que era mais novo, apanhou-me facilmente… Ele foi sempre brilhante e sublinhava o que é que eu tinha de estudar para os exames. E eu só estudava aquilo. Foi uma experiência boa, porque havia uma outra personagem fundamental para nós que era o meu avô, pai do meu pai, um militar. Era um homem duma coragem lendária, um homem que andava à porrada com a Filarmónica de Benfica inteira. Teve dois desgostos na vida, nesses tempos: um deles era que o neto mais velho, eu, não fosse nem monárquico nem muito católico. O outro teve-o quando soube que eu escrevia, que escrevia umas coisas por aí, em caderninhos. Chamou-me, inquietíssimo, a perguntar: «Ó filho, tu és maricas?» Para um oficial de cavalaria, escrever era sinónimo de mariquice… A angústia dele era ver o neto maricas! Jurei-Ihe que não era maricas e aproveitei para Ihe fanar um maço de Português Suave, que eram umas caixas de cartão que ele tinha sempre na gaveta, e ia fumar com o filho do caseiro para o jardim da quinta em Benfica… A chumbada com o meu avô era aos sábados de manhã quando tínhamos que ir montar a cavalo para Cavalaria 7… Eu detestava os cavalos. Era um frete o ca­valo. O João e os outros meus irmãos, acho que gostavam, mas, para mim, era um tormento. Ainda por cima, eu tinha os rins habituados ao hóquei em patins, andava curvado pelo ringue. Portanto, era terrivelmente difícil montar a cavalo no picadeiro da Ajuda. Para mim, aqueles sábados eram tormentosos, mas ele era um avô espantoso, pegava em nós todos, levava-nos ao Jardim Zoológico, ao Coliseu… Era um homem espantoso, morreu quando eu tinha dezoito anos, e todos os dias me lembro dele. Falava de coisas que para mim eram estranhas e fascinantes, encantadoras, porque ele era filho de ‘brasileiros’, de família do Brasil, e as histórias que ele contava falavam de um universo que provocava imenso a imaginação de um miúdo que se alimentava de Sandokans, de Júlio Verne, de que ainda hoje continuo a gostar muito… Havia em casa dos meus avós um livro do Júlio Verne, de capa encarnada, dura, muito antigo, com gravuras fascinantes… Lembro-me até de alguns diálogos… É um belíssimo escritor e estimulava a escrever. O Júlio Verne e mais o Mundo de Aventuras, mais o Cavaleiro Andante, mais os escritores que a gente ia descobrindo. Como eu era um tipo introvertido e fechado, acabava por brincar sozinho, e, aqui há uns tempos, a minha mãe dizia que se lembra de mim sempre a escrever, sempre a escrever. A ideia que eu tenho do final da minha infância e da minha adolescência passa-se entre ler, escrever e jogar hóquei e futebol…

 

Não tinha amigos?

Tinha muito poucos amigos. Nunca tive muitos amigos, de resto. E, amigos íntimos, quem tenho eu? O Ernesto Melo Antunes, o Zé Cardoso Pires, o Daniel Sampaio, não tenho mais… Há, é claro, pessoas que eu estimo, de quem eu sou amigo, mas não com esse lado de intimidade. Mas há pessoas notáveis como o Pedro Tamen, que eu acho um poeta de grande categoria, do meu ponto de vista. E outras pessoas assim, como o Mário Cláudio, com quem eu tenho uma relação muito agradável, muito boa, e que tem sido sempre muito generoso para mim…

 

Como é que você se dá com o meio literário português?

Não há muito tempo. Dantes, as pessoas encontravam-se nos cafés, nos bares, mas agora não há tempo para nada disso. Bom, por mim nunca fiz vida de café… Mas também tenho os dias por minha conta…

 

O Mário de Carvalho dizia, um dia destes, que não tinha muita paciência para o lado social do meio literário, para ir aos lançamentos… Sei que você também não tem muito, mas isso pode ser confundido, muitas vezes, com uma certa arrogância em relação ao meio literário, com um certo sentimento de superioridade…

Para mim, os lançamentos e as inaugurações de exposições são sítios pouco agradáveis, cheios de conflitos… E, depois, não tenho muito a dizer às pessoas, nem muito para ouvir. Cada vez mais, essas pessoas cansam-me. Ao fim de uma ou duas horas, fico cansado e apetece-me estar sozi­nho. Aquilo que dizem não me interessa muito, e aquilo que eu Ihes digo, provavelmente, também não Ihes interessa muito a eles…

 

Por que é que você se cansa das pessoas?

É uma coisa que anda a acontecer cada vez mais. Mas também outras… Ando a gostar cada vez mais de sopa, comecei a gostar de sopa. É muito curioso, porque o nosso universo vai ganhando outra dimensão, vai-se estreitando… Olhe, o prazer que o futebol me dava já não me dá, já não me interesso pelo Benfica, até aos trinta e tal anos ia todos os domingos aos estádios, mas agora já não vou…

 

Isso é porque o Benfica anda a perder…

Não, isto aconteceu-me quando o Benfica ainda ganhava jogos e conquistava campeonatos. Mas, mesmo ir ao cinema, começo a pensar que é uma maçada, começo a pensar que tenho de arrumar o carro, de voltar para casa… A minha vida é simples porque, quando não estou a escre­ver, tenho muito tempo. Por exemplo, a partir do mês que vem, não vou ser capaz de trabalhar antes do Verão e, portanto, vou ter quatro ou cinco meses sem fazer literalmente nada. Vou aproveitar para ler mais ainda, isso é uma coisa que aumenta cada vez mais em mim, o prazer de ler. Cada vez mais, até livros maus. Outro dia, li um livro da Jackie Collins e adorei! Tinha uma descrição fabulosa de um felatio, uma descrição extremamente bem feita, logo a abrir o livro. É um tipo de descrição muito difícil de fazer… Lembra-se da descrição da primeira relação sexual dos dois velhos no Amor em Tempos de Cólera, a delicadeza com que ele descreve aquilo?…

 

E muito dificil escrever sobre sexo… Pode cair-se facilmente no piroso.

Pois pode, e é o mais tentador. Escrever sobre sexo é muito difícil, de facto. Nunca fui capaz de escrever uma cena de sexo… O Orson Welles dizia que havia duas coisas que não se podiam filmar: um acto sexual e uma pessoa a rezar. Mas essa cena de sexo entre os dois velhos, escrita pelo García Márquez, é muito boa, muito bem feita. Eu não sou um grande fã do García Márquez, mas devo reconhecer que é um grande escritor, mas não sou grande fã. Prefiro outros sul-americanos, como o Juan Rulfo, mas acho esse romance do García Márquez um romance notável, um grande livro em qualquer parte do mundo…

 

Você falou do Juan Rulfo, mas o Pedro Páramo não tem nada a ver com a sua maneira de escrever…

Pois não, mas gosto, escreve de uma forma tocante. É um homem muito amargurado, como o Ernesto Sábato, outro escritor admirável. Escreveu três romances, era professor de física atómica… Olhe, tenho uma fotografia muito gira com ele em Paris. Temos o mesmo agente… É um homem muito alto, calado, secreto…

 

Quais são os romances que recorda com mais emoção?

Em primeiro lugar os do Salgari, com aquelas aventuras todas. Depois, os do Júlio Verne. Aos treze ou catorze anos, tive a descoberta dos franceses, com aquela gente, Sartre, Camus, Malraux, que rapidamente me desinteressaram, porque rapidamente descobri os ingleses e os norte-americanos. Graham Greene foi uma grande descoberta para mim. É um escritor que eu ainda hoje admiro. Gosto de ler os livros dele, mas não gostaria de os ter escrito. Mais tarde, foi a descoberta do Simenon, que continuo a achar um grande escritor, homem de três ou quatro frases, espantoso com aqueles ambientes e o modo de descrever as personagens. Depois, ainda, foi a grande descoberta dos russos, com o Tolstoi, o Tchekov… Sobretudo estes dois, e até o Dostoievski, mas muito, muito menos. O Dostoievski era um bocado aborrecido. Mas o Gorki é que me enerva. Aqueles livros davam uma grande vontade de chorar, livros chuvosos, cheios de chuva e de lama, uma coisa horrorosa. Finalmente, a descoberta dos ingleses e dos norte-americanos do século passado, que, para mim, foi decisiva na minha formação.

 

É curioso isso que você diz: gostar do Tolstoi e não gostar do Dostoievski, porque Milan Kundera diz que há duas linhas fundamentais na história do romance: uma que vem de Tolstoi e outra de Dostoievski. Uma ligada ao romance—problema e outra, se quiser, a de Tolstoi, ligada ao ‘romance de história’.

Eu não defendo nem ataco, mas comecei por ler o Tolstoi na adolescência. Ana Karenine e depois o Guerra e Paz, que são dois livros fabulosos…. Todas as pessoas são felizes da mesma maneira, mas as pessoas infelizes, meu Deus, é dramático… A Morte de Ivan Ilitch é uma obra-prima, parece-me a mim. E o Moby Dick, do Melville, ou as histórias de Stephen Crane…

 

A Insígnia Rubra da Coragem…

Espantoso. Aquele sofrimento da guerra...

 

Disse, há uns anos, que uma das razões por que preferia viver em Portugal é porque queria mostrar como é que se fazia um romance. Ainda continua a tentar? Ou gostava mesmo era de viver no estrangeiro?

Uma vez fui para a Alemanha com um convite da cidade de Berlim, em 1984 ou 1986, já não me recordo, e era tremendo, ninguém falava a minha língua, não havia Portugueses. Também estive em Paris a escrever metade de um livro, estive em Nova Iorque muito tempo, já Ihe contei… Mas foi sempre muito difícil estar longe de Portugal, deixar de ouvir a minha língua. A língua, sobretudo… Eu gosto desta terra. Nós somos feios, pequenos, estúpidos, mas eu gosto disto. Quando estava mais tempo longe, chegava ao aeroporto e via polícias e tinha vontade de beijar os polícias. Palavra de honra! Mas, em momentos de desespero, apetecia-me era ser angolano. Estive lá durante a guerra, e era o país mais bonito que eu conheci. Angola. Era uma terra de uma ternura, de uma beleza! Tudo era novo, tudo flutua, a terra dava arroz, girassol, algodão duas vezes por ano, e uma paisagem daquelas… As noites são enormes, e o que era estranho para mim era o céu, que é completamente diferente do nosso. Não se vêem as Ursas, vê-se o Cruzeiro do Sul… Não tenho saudades de nenhum lugar, mas de África tenho muitas saudades. Há uns tempos, convidaram-me para ir a Africa, mas as cidades de que eu gostava já não existem, foram destruídas pela guerra civil… Olhe, Malanje. Não me importava de viver em Malanje, na Malanje que eu conheci…

 

O seu novo livro fala de África…

É todo sobre Africa, a volta de Malanje. Há lá um sítio chamado Baixa do Cassanje em que a gente via vinte hectares de algodão e de girassol, era muito engraçado ver aquelas flores a abrirem os olhos, enormes, voltadas para o sol…

 

Vão acusá-lo de neocolonialismo…

E eu nas tintas. Mas não sei. A verdade é que não me preocupa muito. Este livro é todo sobre os colonos de África, um livro sobre a vida em África até 1961. Depois salta de 1961 para 1975, sem falar da guerra colonial…

 

Qual é a história do livro?

É sobre uma mãe, que está em An­gola, e três filhos que ela pôs no barco para cá em finais dos anos setenta. É um livro com trinta capítulos e três partes… Eu penso que tenho vindo a aprender a escrever e acho que o livro marca um passo muito grande em relação a este [O Manual dos Inquisidores]. São só quatro pessoas. Penso que, ao nível da escrita, está muito mais maduro, sério, bem construído. Como tenho estado a trabalhar nele nos últimos dias, acho que marca um passo em frente. Bom, este foi tão bem recebido pela crítica, que não sei que adjectivos vão usar para o próximo! Já reparou que, com este livro, se fez a unanimidade em Portugal?

 

Não a unanimidade…

Está bem, O Independente diz sem­pre mal, isso não é relevante…

 

De que forma é que vê a relação dos Portugueses com África? É da África ainda portuguesa que você fala neste livro… Como é que vê, hoje, a memória dos Portugueses de África?

A situação dos colonos, que nos achávamos — e eram — reaccionários, era muito complexa, porque eles tinham a sensação de ser os pretos dos brancos daqui…

 

Brancos de segunda?

Ou isso. Trabalharam aquelas ter­ras com muita dedicação. Devia ser terrível andarem a lavrar a terra com bois e os homens de colete com um calor insuportável, as mulheres com lenço na cabeça, xaile… Não estou a falar ao nível das pessoas muito ricas, mas ao nível do colono pobre. E há coisas espantosas, como o túmulo do Zé do Telhado. É um túmulo espantoso. Depois, falo de personagens que se distinguiram vindos do nada, como um que era soldado da Guarda Republicana e que ficou podre de rico com alguns negócios… É disso tudo que eu falo, da compra dos Bailundos cá de baixo, da maneira como os chefes colaboravam com o negócio, dos cubos de gelo pelo rabo acima para aqueles que não queriam trabalhar, dos enforcamentos que ainda vi. Era muito brutal tudo aquilo, muito estra­nho para um portuguesinho qualquer da Metrópole. Lembro-me de umas eleições de misses lá no Ferroviário local. Pois, nesse mesmo dia, assassinaram a miss eleita, a tiro… Era um faroeste cruel. Antes da primeira revolta, houve uma chacina na baixa do Cassanje, mataram mais de mil trabalhadores. O livro anda à volta destes pormenores, mas é evidente que isto é só o enredo de base. O Picasso diria que a intriga é o prego onde eu tenho os meus quadros, e o que me interessa é ao nível da escrita.

 

Só?

Bom, tem que ter uma história, mas isso a gente aprende nos americanos. Os romances ‘paralisados’, à francesa, é que não…

 

Você fala dos americanos, sobretudo dos ‘seus americanos’, como se eles tivessem inventado a arte do romance. Mas você tem algumas histórias muito boas, e não são só os americanos que sabem contar histórias… Antes dos seus americanos já havia muita gente a escrever como você diz. Desde o princípio do mundo…

Pois, talvez. Mas, voltando à conversa, as inovações técnicas do Faulkner existem para servirem a narrativa que ele está a contar, enquanto que, muitas vezes, as inovações técnicas do Joyce são piruetas apenas… Do género: «Eu sou o Joyce, vejam como é que o Joyce brinca com as frases, vejam esta construção, vejam como ele sabe fazê-las bem…» Eu sou um grande admirador do Joyce, um leitor e releitor do Ulisses, e até das diferentes edições, por causa dos prefácios, mas há uma pirotecnia técnica que não está, muitas vezes, a servir a história. Isso prende-se com aquela noção do Tolstoi, que falava da arte do romance em termos de eficácia. Ele dizia que um bom romancista era um romancista eficaz, aquele que não se sacrifica à pirueta, à metáfora… O seu objectivo é a eficácia da narrativa.

 

Mas você tem diminuído aquelas metáforas que usava a princípio…

É aí que reside grande parte dos erros dos meus primeiros livros — eu tinha muito o desejo de mostrar como era capaz de fazer imagens bonitas, bom… que eu achava bonitas, ou me­táforas ou não sei quê. Todo o livro é que tem de ser a metáfora…

 

E este novo livro é a metáfora de quê?

De uma parte da nossa identidade. Os outros livros também tenho tentado que sejam, sobretudo a partir do Tratado das Paixões da Alma… Acho que os primeiros livros que escrevi são fraquinhos, os outros a seguir são promessas agradáveis, mas acho que, a partir do Tratado, os livros estão bem.

 

Sim, mas há referências permanentes…

As minhas opções é que são sempre as mesmas: a vida, a morte, a ausência de amor, a incomunicabilidade. Sob esse aspecto, tenho sido fiel. Mas todos vivemos com as mesmas obsessões. Por exemplo, antes de vir para esta entrevista estive a ler os seus livros de poemas, que tenho ali, e é curioso que, depois de passar para os seus romances, que também tenho, as suas opções também são sempre as mes­mas. São sempre quatro ou cinco: a água, a luz, o céu, os lugares e o perigo das paixões são coisas que aparecem com uma frequência imensa…

 

Mas há outro aspecto para além das obsessões. Por exemplo, quando você fala de amor… Nunca há uma relação nova que se inicia, há sempre fins de relação, restos…

Lembro-me do que o Columbano dizia: «não tenho fé, mas tenho muita esperança». Eu acho que também tenho pudor em mostrar isso, talvez por educação, por temperamento, mas, curiosamente, a crítica espanhola e alemã acham os livros optimistas e divertidos.

 

Por que é que não há nunca esses ‘começos’ de amor?

Isso tem, talvez, que ver com a minha relação com a morte e com a incompreensão que eu tenho perante o sofrimento. Quando eu era interno de pediatria, estavam na minha enfermaria muitos miúdos com doenças terminais. Não era bonito de se ver. Eu não me esqueço de ver miúdos e miúdas de quatro anos a chamarem aos gritos por uma injecção de morfina… Isto era comovente até às lágrimas, e era desesperante a sensação de impotência perante o sofrimento de pessoas que nunca tinham feito mal a ninguém. Era desesperante estar diante dessa injustiça. Lembro-me de uma miúda que tinha uma leucemia com treze anos e que se levantou e foi ao gabinete de enfermagem e, quando fui ver, ela estava a chorar porque tinha uma leucemia… Só conheci a morte muito tarde… Sou o filho mais velho de dois filhos mais velhos, os meus avós não tinham cinquenta anos quando eu nasci, não havia mortos, não havia nada, e, de repente, dou de caras com a morte nos hospitais. Em primeiro lugar, foi muito bom porque poucas coisas têm realmente importância quando se fala no sucesso. Tal­vez por isso esteja sempre presente em mim o fantasma da morte. E os fantasmas de tudo, do amor, da nossa própria morte. Acho injusto que o Bach, que é reconhecido só no século passado, praticamente não tenha podido usufruir nada do seu êxito! Acho que o Namora deve ter morrido feliz, era um escritor de sucesso. Depois, acho injusto, até ao nível da literatura, que certos escritores tenham sido esquecidos, como o Redol, tenho uma grande admiração pelo Redol, não me atrevo a dizer que um livro dele é mau, porque há ali trabalho de operário. Tenho uma grande admiração pelo Redol porque era um escritor a sério e acho que é um bom exemplo para nós todos que andamos a mexer nas palavras. Acho injusto o esquecimento em redor do Carlos de Oliveira… Quem é que lê, hoje, Carlos de Oliveira? A mim choca-me isto. Por isso é bom descobrir vozes novas, como eu agora descobri o António Franco Alexandre, um poeta extraordinário. Escrevi para o Publico sobre ele, que eu não sei quem é, não conheço, não sei o que faz, mas parece-me um escritor de grande qualidade.

 

Você parece o doutor Cunhal a fugir às perguntas…

Gosto do Álvaro Cunhal, não acho que ele fuja as perguntas… Aí está outro homem que eu admiro…

 

Você esteve próximo do PCP…

Sabe?, eu gostava de ser do PC, mas, para mim, é impossível. Se a estrutura do Partido não fosse tão ver­tical… gostava de ser militante, sim… Há um lado eclesiástico do PC que me repugna um bocado… A forte hierarquia, a ausência de debate aberto e alargado, isso assusta-me um bocado. Eu li uma vez uma entrevista do Mário de Carvalho em que ele explica por que é que é comunista, e pareceu-me muito romântico… A ideia que tenho dele é que me parece um homem extremamente bom, tem uma margem na política para o sonho, que eu não tenho. Quase todos os homens políticos foram uma profunda desilusão para mim, pelo menos aqueles que eu conheci pessoalmente…

 

Você é um homem permanentemente amargurado, magoado, sem­pre em sofrimento, parece que não tem momentos de alegria…

Então não tenho?! Eu acho que o facto de ser hipercrítico me impede de grandes demonstrações de afecto. Mas, de facto, não sou expansivo. O meu amigo Daniel Sampaio diz que eu tenho a depressão do sucesso: o sucesso nunca me deu alegria, os editores mandam livros meus acabados de sair, e eu nem os abro. Também, nunca li um Iivro meu, porque me dá logo vontade de começar a corrigi-lo e a emendá-lo, como até acontece muitas vezes com os livros dos outros. Dá vontade de me atirar a eles, mas não é por maldade. No fundo, a nossa opinião é sempre muito parcial, e temos tendência para repudiar tudo o resto… E depois confundimos paixões com ideias. É muito raro a gente apreciar um livro de um escritor de quem não gosta de dizer: «Eu não gosto, mas é bom!» E acontece: eu não gostava do Vergílio Ferreira, achava-o um tipo, enfim, um tipo de que eu não podia gostar, um bocadinho para o estupor. No entanto… Ele tem livros mesmo bons, bons a sério. Isto é verdade, e tenho que reconhecer. Há escritores de quem não gosto, e tenho que reconhecer que são bons. E é-nos muito difícil isto, a nós todos. Eu gosto do Camões porquê? Porque é da minha família. Fernando Pessoa não é, por exemplo. Gosto da sensibilidade do Camões, continuo a achar que ele inventou o português tal qual a gente o fala ou sente. Por exem­plo, o José Cardoso Pires adora a Peregrinação. Eu gosto, mas… acho aquilo, enfim… Agora quanto à amargura… Eu não tenho grandes depressões, mas tenho momentos de zanga, de desespero, cada vez mais. O difícil vai ser, agora, passar estes próximos quatro ou cinco meses sem escrever, porque aquelas coisinhas que eu faço para o Público são puramente alimentares… Qualquer jornal que me pagasse, eu fazia também…

 

Como é que você encontra os temas para as crónicas?

Isso é um sarilho. Veja esta última que escrevi… Aqui há uns tempos foi-me proposto fazer crítica literária. Não me acho capaz de a fazer, mas apeteceu-me falar daquele livro que me tinha tocado, os poemas desse An­tónio Franco Alexandre. Eu começo sempre por dizer que me interesso pouco pela história da literatura portuguesa e que os escritores portugueses me surpreendem, geralmente, pela negativa. O Júlio Verne tinha um sistema engraçado… O gabinete dele era uma grande confusão, tudo cheio de papéis, de cadernos, de estampas de livros… Então, quando acabava uma página, punha-a debaixo do rabo para não a perder. Os escritores portugueses deviam fazer isso para não se perderem a si próprios… Há escritores que encontram uma fórmula que fez sucesso e que optam sempre por aquele tipo de escrita. Parecem uma fábrica de pastéis de nata! Mas a nossa relação com os livros é curiosa, por­que acabamos sempre por ir comprar um grande livro, um Simenon ou parecido, à procura de uma certa atmosfera que, ao mesmo tempo, nos irrita… Até os escritores que nós admiramos, sobretudo esses, nos irritam. Irrita-nos aquilo que a gente vai procurar, é muito engraçado, temos uma relação muito ambivalente em relação aos escritores de que gostamos… Então, vamos à procura de uma coisa e queremos que eles fizessem outra?! E depois dizemos «perdeu frescura», ou fomos nós que perdemos frescura? Como é que trabalham os nossos olhos em relação a eles? É muito complicado, até porque, quando a gente anda a trabalhar com livros, são capazes de aparecer sentimentos próximos, muito próximos da inveja, do ciúme, inevitavelmente. E é muito complicado lidar com o sucesso, muitas vezes…

 

Como é que você lida com o seu sucesso?

Acho que cada pessoa tem o direito a pensar a sua realidade, durante algum tempo, como se fosse a única no mundo. Às vezes, há pessoas que vão à televisão, ao seu programa, e que fazem umas figuras… De resto, tenho reparado que os escritores com mais talento são os mais modestos. Das pes­soas que lá tem levado e que eu tenho gostado de ouvir, as que têm mais talento são as mais modestas e as mais abertas. Às vezes tem a ver, só, com a honestidade. Há aí um homem, o Vasco Graça Moura, que não gosta de mim nem eu gosto dele como pessoa, mas parece-me um tipo honesto. Eu acho que ele parece um homem hones­to, bom poeta, bom escritor, e a tradu­ção que ele fez do Dante, e que Ihe dá o prémio, é muito boa… Quer dizer, a tradução pareceu-me excelente, do meu ponto de vista… Traduzir poesia é muito difícil, é tramado. Olhe, o Cavafy traduzido pelo Sena é uma merda… Ele não era lá muito bom tradutor: traduziu as Palmeiras Bravas, do Faulkner, e O Velho e o Mar, do Hemingway, de uma maneira… Não percebeu nada. E depois faz aquele romance que é um pastelão e que a malta gosta de ler, Sinais de Fogo. Mas, também, a malta também gosta de ler o Mau Tempo no Canal, que parece uma sopa de pedra! E nós temos excelentes romances, Casa Grande de Romarigães, que é uma delícia de romance, Finisterra, Barranca de Cegos, O Delfim, por exemplo, etc. Mas há mais, como o Casas Pardas… Não somos assim tão pobres quanto isso… O Que Diz Molero, quer queiramos quer não, é um livro muito engraçado, abriu muitas portas. É um livro muito engraçado…

 

Continua a escrever, dias inteiros?

Catorze ou quinze horas por dia, sábados e domingos, sempre ou quase sempre. Todo o tempo me faz falta, até as horas das refeições, porque, neste momento da minha vida, o trabalho é-me cada vez mais importante e me leva a corrigir, a corrigir, a corrigir… Aquilo que acaba por ser publicado é aí um quinto da primeira versão.

 

Faz muitas versões de cada livro?

Faço duas à mão, primeiro, e depois aí umas três, quatro ou mesmo cinco já em dactilografia, mas sempre a cortar. Havia escritores que acrescentavam: Camilo, Proust… Eu tiro, tiro, tiro…

 

O que é que gostava que acontecesse a este novo livro?

Que fosse feliz, claro. Que fosse o melhor. Aquele homem, o Cabrera Infante, o autor de Três Tristes Tigres, o Cabrera diz que a gente escreve não para ser lido, mas para ser escrito… Não sei… Para mim, agora, a opinião fundamental é a do meu agente, que me diz sempre na cara aquilo que pensa e que é o primeiro leitor. O livro não vai sair cá em Portugal logo, até porque eu acho que não há público para ler um romance por ano em Por­tugal. Tenho de mandar o livro para o agente e para os editores estrangeiros com quem já tenho o contacto feito, e, depois, aqui em Portugal se verá… Até porque este livro [Manual dos Inquisidores] continua a vender bem e, portanto, vou deixá-lo viver…

 

Só vai publicá-lo no Natal?

Sim. O Manual dos Inquisidores esteve um ano e tal à espera de ser publi­cado aqui. Saiu primeiro em França, as outras editoras atrasaram-se com a tra­dução, vamos ver o que vai acontecer… Primeiro, é preciso eu estar satisfeito, e eu já estou satisfeito com ele, mas nunca me importei que não gostassem dos meus livros, desde que o façam com boa-fé. Nunca respondi a nenhuma crítica porque há pessoas que não gostam de um livro, escrevem isso mesmo e o fazem de boa-fé… Isso não me importa. Agora, quando as coisas são feitas com burrice e com má-fé, isso choca-me. A única vez que falei sobre um livro foi na primeira crónica do Público, sobre um livro do Mário Cláudio, que é uma pessoa que eu estimo e que respeito e que foi completamente crucificado por uma crítica ao Tocata para Dois Clarins, e eu achei tremendamente injusto. Foi cruci­ficado por toda a parte… No Expresso, no Independente, até no Diário de Notícias, onde uma menina qualquer, uma patetinha, escreveu as maiores burrices sobre o livro, sem ter havido um esforço para entender o trabalho daquele homem… Eu acho que é um livro notável, do meu ponto de vista…

 

Os escritores Portugueses são mal tratados em Portugal?

Não… Eu acho que não tem relevância uma crítica boa ou má dum senhor qualquer ou da menina não sei quantas… Acho que é mais relevante o Eduardo Prado Coelho escrever sobre o livro, mesmo que não goste. Porque tem outra inteligência, tem outra maturidade. Ou o Eduardo Lourenço, ou o Óscar Lopes, com quem eu muitas vezes estou em desacordo, mas não interessa. Tem um peso de honestidade e de seriedade, quer a gente queira ou não. Nisso, o Jorge de Sena tinha razão: quando a crítica é feita por um escritor, ele está a falar de qualquer coisa que conhece de dentro e, então, pode dizer coisas muito mais inteligentes. Por exemplo, o José Cardoso Pires seria um excelente crítico, se quisesse…

 

Porque é que não há muitos escritores a fazer crítica em Portugal?

No estrangeiro, há… Eu não me importava nada de fazer crítica, mas só a livros de que gostasse. Penso que é uma questão de preço; os escritores ganham tão pouco em Portugal que, se fossem bem pagos, faziam com certeza… Olhe, ninguém discute o Pré­mio Nobel da Física, mas toda a gente se acha capaz de discutir o Prémio Nobel da Literatura, como se a literatura fosse uma coisa simples e acessível…

 

Mas romances toda a gente lê, pode ler, enquanto que a investigação em física ou biologia…

Isso é verdade, mas vacinas toda a gente toma! Todos nós temos opiniões sobre pintura ou sobre música, ou não sei quê, e saber, de facto, de literatura é muito complicado. Eu ainda estou a aprender… Então, um livro bom, em que não se vêem as costuras, nem os parafusos, nem as porcas, a gente tem que ler duas e três vezes para ver onde é que o escritor hesitou, onde é que ele teve problemas… A gente vê um livro mau, por exemplo, de um homem de que eu gostava multo, como o David Mourão-Ferreira… Um Amor Feliz, do meu ponto de vista, é um mau romance. Quando Ihe aparece uma dificuldade técnica, faz a pirueta de um poema… Bolas, quer dizer, isso é uma das razões por que eu acho aquilo um livro que não convence nada. De cada vez que apa­rece um problema, o narrador dá uma cambalhota, ou com uma imagem, ou com um poema, ou com uma carta. Isso, não… Olhe, por exemplo, o Fitzgerald, que eu acho um excelente romancista… Quando ele tem uma dificuldade técnica, torna-se muito mais precioso, desce ao pormenor do pormenor, fica uma filigrana… O Grande Gatsby é um romance quase perfeito, não é? A gente vê grandes romances, como, por exemplo, o Debaixo do Vulcão, que ninguém lê, não se fala nele… O Nuno Bragança, num outro plano, quando começa a ter problemas com A Noite e o Riso, lança-se numas piruetas de estilo… Porque se vê logo que ele estava com proble­mas na escrita do livro… Quando li a primeira vez, achei deslumbrante, foi uma descoberta! Depois, comecei a ler aquilo mais vezes e acho que, sem ele querer, acaba por ser responsável por muita merda que se fez depois, com uma série de indivíduos que desataram a escrever porcaria como se fossem modernos.

 

Quando é que você sente que um livro seu está terminado?

Exactamente da mesma maneira que o Freud dizia que uma análise está acabada. Uma análise está acabada quando eu e o paciente estamos, ambos, contentes… A certa altura, o livro já não aceita mais trabalho, é nessa altura que eu sei que já está acabado. Já escrevi livros suficientes para sentir isso. Eu, uma vez, vivi numa casa que não gostava de mim, o que, de si, já era horrível, era uma casa que me empurrava para a rua constantemente… O romance também faz isso connosco. No Manual queria pôr um travesti, à força, como amante do velho ministro. Andei para aí atrás dos travestis e a falar com eles — é um mundo espantoso, de uma crueldade e uma dor infinitas — e, depois, queria meter o tra­vesti e não conseguia! Acabou por entrar a tal Milá… Isso é muito curioso, porque o romance se transforma num organismo vivo, com regras próprias…

 

É muito lento a escrever?

Sou, o que não é virtude nenhuma. Mas eu trabalho todos os dias… Este país é que é muito preguiçoso. Eu acho que ele é preguiçoso, é um país que vai para os bares, para os cafés…

 

Você não vai para os bares?

Eu já não bebo, e os bares são coi­sas tristíssimas. Houve uma altura da minha vida em que eu andava muito com o Dinis Machado e com o Artur Semedo, era um grupo de pessoas engraçadas e divertidas. E eles bebiam, íamos para o Procópio, mas ao fim de uma hora estava farto, já conhecia as pessoas todas… Aliás, eram sempre as mesmas em todos os sítios… Mas eu sou uma pessoa fácil de viver porque não gasto muito dinheiro e também porque não me mexo muito…

 

Por mim, gosto de estar em casa, faço tudo para não sair…

Essa é a vantagem do meu traba­lho, de se ser escritor…

 

Como é que você passa as suas noites?

Trabalho, leio, às vezes vejo televisão, mas pouco… Estou com os amigos muito raramente. Com o Daniel Sampaio, almoço uma vez por mês com dia marcado, é uma tradição… Com o Ernesto Melo Antunes, tam­bém… Vejo mais o Zé [Cardoso Pires], de facto. Mas eu gosto de poupar os meus amigos, e com a idade a gente vai vendo cada vez menos as pessoas. Vejo as miúdas uma vez por semana, e a gente descobre que elas são diferentes de nós, que não são nossas. É espantoso, as filhas prolongam coisas nossas. Uma das minhas filhas tem as mãos iguais às minhas. Mas são outras pessoas completamente diferentes, isso é uma descoberta maravilhosa, ver crescer os filhos…

 

Não se sente sozinho?

Não, não me sinto sozinho… Tenho uma vida afectiva agradável, não me sinto sozinho… Antes, sentia-me horrivelmente sozinho, mas, de há uns anos para cá, não tenho sentido nada disso… Estava a lembrar-me do poema de Carlos Drummond de Andrade acerca do envelhecimento, um poema feito aos quarenta anos. O começo é assombroso: «Talvez uma sensibilidade maior ao frio, desejo de voltar mais cedo para casa…»

 

 

Revista Ler

Inverno de 1997

Exortação ao Lobo

caricatura sobre Antonio Lobo Antunes, da autoria de Miguel Soares, com que a revista abre a entrevista

 

António Lobo Antunes é, no mínimo, desconcertante. A meio da entrevista, tenho vontade de vir embora. Sinto-me como quando estava no exame de condução – sabia que tinha chumbado mas o examinador continuava a pedir-me que fizesse manobras e tentasse meter o carro em espaços impossíveis. E, no entanto, Lobo Antunes só fez sorrisos – um sorriso angelical que condiz com os seus olhos muito azuis e que se segue, quase como um tique, a uma frase que percebe ter-nos deixado nervosos.

Não grita, fala num tom suave e é educadíssimo – pede para repetirmos a pergunta duas ou tês vezes, as suficientes para que fique bem evidente que estúpida e vazia é.

Afirma repetidamente que não faz juízos de valor, nem se acha acima dos outros, mas depois vai dizendo, a propósito de tudo e de nada, que só gosta de entrevistas quando os entrevistadores têm qualidade, até ao momento em que temos vontade de apresentar desculpas e sair. E aí, faz um outro dos seus sorrisos ternos e garante que não são insinuações, porque não é homem dessas coisas e, de resto, “só a conheço há meia hora”.

Tento mais uma pergunta. “Falar de mim? Mas isso não me interessa”, diz-me hoje, agora, porque quando marcou a entrevista, informado desse mesmo objectivo, não protestou.

E eu volto a sentir a mesma perplexidade que senti quando lhe perguntei qual era a memória mais antiga da mãe e ele me respondeu que isso era pessoal e não me dizia, ou se inclinou várias vezes sobre a secretária para me pedir (educadamente) que repetisse outra vez aquela pergunta absurda, estranha, inacreditável do “Tinha um urso de peluche?”.

Culpo-me a mim própria. “Ele tem toda a razão, isto são perguntas que se façam a um grande escritor?”, penso eu, intoxicada por aquela estratégia que à distância percebo não ser mais do que uma forma de confundir o inimigo.

E, de facto, o que é que interessam as mães, os pais e irmãos, os ursos de peluche e os comboios eléctricos, os psiquiatras e os amigos de infância, a relação com os doentes, as criadas e as tias, os livros lidos alto e os lares de terceira idade, as árvores de Benfica e os jardins onde habitavam os corvos e tudo aquilo com que Lobo Antunes transforma os seus livros em obras de arte, nos atrai, emociona, faz rir e prende página após página? Que importância têm e que interesse há em falar neles, quando podemos meditar sobre o fio da narrativa ou embrenharmo-nos em citações de escritores, grande escritores, que os bananas dos jornalistas não conhecem, nem querem discutir, porque – imagine-se – gastam o tempo todo a tentar perguntar coisas que os leitores da entrevista estariam mais interessados em saber.

E o mais extraordinário de tudo isto é que, durante umas horas, não percebemos a contradição, não damos pelo facto de Lobo Antunes ir falando repetidamente de si próprio – desde, evidentemente, que não seja directamente em resposta a uma pergunta feita, como a criança que só come a sopa quando a mãe olha para o lado. E o mais extraordinário, ainda, é que ficamos com vontade de rezar dois Padres-Nossos e três Avé-Marias por não estarmos à altura de o entrevistar, em lugar de pura e simplesmente batermos com a porta.

E, no entanto, quando deixamos o seu gabinete e percorremos os corredores do Hospital Miguel Bombarda, cruzando-nos com doentes de roupão e a arrastar os chinelos, a conversa parece que normaliza. Ou, pelo menos, a minha cabeça volta a funcionar normalmente – sim, porque não duvido que para o ex-psiquiatra nada disto seja mais que um “delírio persecutório!”.

Vamos almoçar ao restaurante mais próximo. Falamos sobre snobeiras e beijos de um lado e dos dois lados, de espelhos de talha e da grandeza da alma, de telenovelas e de tipos de pessoas. E faço o “diagnóstico”: Lobo Antunes é um “menino bem (formado)”, inteligente, com sentido de humor e espírito crítico que soube libertar-se do casulo onde os “meninos bem” habitualmente vivem a vida toda, e percorrer o resto do mundo, torcendo aqui e ali instintivamente o nariz às mulheres que o tratam por filho e aos escritores que comparam carros parados em semáforos a cavalos impacientes, capaz de gostar para além das aparências, de se emocionar para além do que gostaria e com um génio extraordinário para juntar tudo isto e transformá-lo em personagens e palavras que o tornam num dos nossos melhores escritores. Tudo isto sem deixar de ser, basicamente, um menino “mimado”, que com aquele sorriso e aqueles olhos azuis aprendeu todas as técnicas de deixar os outros desconcertados, infelizes e humilhados. Quando quer. Para no momento seguinte ter tanto charme e encanto, que temos medo de ter incorrido em juízos precipitados.  E assim sucessivamente.

[texto de Isabel Stilwell]

 

Detesta mesmo dar entrevistas?

Não me parece muito importante. Acho que é sempre um exercício de vaidade.

 

Um exercício de vaidade?

Acho que sim. E também um exercício de voyeurismo de quem a faz. É de parte a parte. O importante são os livros. Depois, a minha vida não tem importância nenhuma.

 

Mas acha que os entrevistadores querem é tirar uma fotografia consigo e dizer que o conheceram?

Não, não acho nada disso. Há de tudo. Tenho tido a felicidade de encontrar pessoas que são muito boas e que sabem muito de literatura e outras que serão menos boas. É difícil haver em Portugal pessoas com a categoria intelectual, por exemplo, da Marisa Blanco [gralha da revista: o nome é María Luisa Blanco, obviamente], uma grande jornalista espanhola. O País é pequeno e nós somos poucos.

 

Mas gosta de dar entrevistas sobre os seus livros?

Deve reparar que, normalmente, falo pouco dos livros.

 

Então, o que é que adianta ao entrevistador saber muito de literatura? Mesmo naquelas em que ele obviamente sabe, diz que não responde!

Mas também falo pouco de mim! É que por vezes as perguntas… Como é que hei-de explicar isto?

 

São estúpidas?

Não, estava a tentar encontrar uma maneira de dizer isto porque as emoções são muito anteriores às palavras e depois dizer isto em palavras é complicado. Tenho a sensação que me vou repetindo, percebe?

 

É o mesmo, não pode dizer coisas muito diferentes.

Uma entrevista é boa se o entrevistador é bom. Lembro-me que as entrevistas do Fellini eram maravilhosas, mas ele tinha uma graça, um humor, uma facilidade verbal que eu não tenho.

 

Nas entrevistas aos jornais estrangeiros, as respostas parecem mais desenvolvidas que as que dá aos portugueses. Faz mais cerimónia, quer ter lá uma imagem diferente da que tem cá?

Muitas vezes nas respostas estão coisas que não disse. Mas julgo que tem a ver… é curioso… com é que eu hei-de dizer? Nós aqui, em Portugal, quer conheçamos quer não as pessoas, temos uma imagem delas. E como normalmente a imagem é errada, as entrevistas também são erradas porque acabamos por querer que o entrevistado corresponda ao estereótipo que temos dele. Enquanto num país estrangeiro não têm nenhuma imagem pessoal, nenhuma fantasia, é uma pessoa que vêem pela primeira vez…

 

Não têm uma imagem pré-definida?

Exacto. E nós ouvimos falar de uma pessoa e temos imediatamente uma ideia, inventamos coisas, supomos coisas, mesmo acerca da vida pessoal dela e isso necessariamente vai inquinar o trabalho, do ponto de vista jornalístico, percebe?

 

Eu própria tive sempre medo de pedir-lhe uma entrevista, porque a imagem que me davam de si era a de uma pessoa agressiva, até malcriada…

Isso é uma coisa completamente absurda. Sempre achei (risos) isso tão absurdo. Eu não entendo, não sei de onde é que veio.

 

Tive uma colega, no Diário de Notícias, que regressou de uma entrevista consigo a dizer que a não tinha feito porque lhe disse que ela era feia e que, de certeza, morava nos Olivais.

Não creio. É possível que tenha feito uma brincadeira qualquer que ela não tenha percebido. Mas acho pouco natural.

 

Mas em geral não é verdade que gosta de ter uma imagem de pessoa que não tem paciência?

Não, não é verdade. Se conhece algum amigo meu, sabe que não é essa a imagem que têm de mim. A mim, parece-me muito estranho, porque de facto eu não sou assim.

 

Agora mesmo estava a dizer, irritado, que não atendia o telefone porque não tinha paciência para aturar a pessoa que lhe ligava, e para os seus amigos deve ter a disponibilidade toda do mundo.

Eu não tenho paciência para os meus amigos, tenho amor por eles.

 

E esse amor cria uma relação que lhes permite ter uma imagem muito positiva de si?

Não sei. Eu tenho muito poucos amigos. Muito poucos. Então agora, que morreram duas pessoas que eram tão importantes para mim.

 

E porque é que tem poucos amigos?

Porque a amizade é como o amor. É uma coisa muito difícil. Para mim. E é muito engraçado porque as amizades que tenho foram amizades à primeira vista. Por exemplo, a primeira vez que vi o Daniel Sampaio, tinha vindo da guerra. Já o conhecia da Faculdade, ele interessava-se pelo movimento antifascista, associativo, eu jogava xadrez e escrevia e estava-me borrifando, tudo isso me passava ao lado. Fui colocado em Santa Maria e entrei no gabinete de enfermagem e estava um rapaz de olhos claros encostado à balança e foi assim. Ficámos amigos  desde aí. E com os outros também. Foram todas amizades assim. Como é que hei-de dizer? A gente conhece-se e fica amigos de infância, não sei explicar… E depois a amizade tem coisas óptimas, é assexuada, não é exclusivista, não tem ciúme. E por outro lado, sentimos que são pessoas que estão ali quando precisamos delas. Por exemplo, com o Ernesto Melo Antunes. Ele já estava tão doente e eu tinha sido operado a uma porcaria qualquer na língua e ele telefonava a perguntar se eu já estava melhor. Feita destas atenções, deste amor. Mas acho que é uma coisa muito rara. Julgo que nós não podemos contar com mais do que quatro ou cinco pessoas na vida. Por exemplo, em relação aos meus irmãos. Nunca tive nenhuma conversa pessoal com nenhum deles, nem com os meus pais, nem nada disso. Existe muita cerimónia entre nós. Não são meus amigos, são meus irmãos.

 

E porque é que é assim?

Por pudor. Porque éramos uma casa  de muitos filhos e de pais austeros, onde ao jantar se falava de música ou poesia ou medicina ou outra coisa qualquer, não havia, nem há, conversas pessoais.

 

E sente falta dessas conversas pessoais?

Não, porque nunca houve e não posso sentir falta do que nunca tive! Sinto falta das pessoas que morreram. Por exemplo, o telefone toca às 10 da manhã e penso “É o Zé” (Cardoso Pires), que era a hora a que ele telefonava, ou apetece-me ver o Ernesto (Melo Antunes) e não posso vê-lo.

 

Diz que escreve para si…

Cada vez penso mais que escrevo contra a morte. Então depois destas últimas mortes, porque em face da morte a maior parte das coisas desaparece, a vaidade… Quando o Howard Hughes morreu, um jornalista perguntou ao advogado dele quanto é que ele tinha deixado e o advogado respondeu: “Deixou tudo”. Eu julgo que escrevo fundamentalmente contra a morte.

 

Tem medo de morrer?

Não sei, não sei responder…

 

Porquê? Porque o assusta pensar nisso?

Passei muito tempo perto da morte. Quando era miúdo a morte não existia, porque era o filho mais velho de dois filhos mais velhos. Eram todos muito novos, os meus pais, os meus avós. Só aprendi a morte quando fui para a Faculdade, com 16 anos. Fui para medicina por acaso. Nunca pensei ser médico. Mas foi o primeiro contacto que tive com a morte. Depois nos hospitais, depois na guerra. A pouco e pouco, as pessoas de quem gostamos vão morrendo. No fundo, envelhecer é ver morrer as pessoas de quem gostamos e às quais, a maior parte das vezes, não tivemos sequer tempo de dizer, por pudor, que gostávamos delas. E o remorso que se sente depois por não o termos feito.

 

 

Não quero desiludir as pessoas

 

Mas porque é que acha que escreve contra a morte? Explique lá.

Não sei, porque talvez seja a única coisa que posso dar às pessoas. Lembro-me que esses amigos que eu tinha (e os poucos que ainda me sobram) viviam os livros, não enquanto eu os escrevia, mas depois, com muito mais entusiasmo que eu. E é a sensação constante de não ter o direito de os desiludir, escrevendo um livro que seja mau ou que os decepcione.

 

Nos seus livros e nas suas crónicas, com as devidas proporções, acho que é um pouco o Herman José da literatura. Eu explico: o que o Herman faz mesmo bem é apanhar os diferentes tipos de pessoas e acho que uma das suas qualidades – e não conheço muito da sua obra, nem sou especialista em literatura, nem em nada – é exactamente “apanhar” as pessoas.

Eu, com todo o respeito que tenho pelo Herman José, acho essa comparação perfeitamente atroz. Por essa ordem de ideias, o Camões é o José Cid da literatura, por amor de Deus!

 

Não, era só uma provocação no sentido de que é capaz de descrever muito bem os diferentes tipos de pessoas.

Mas isso não me preocupa nada. Não é isso que me interessa quando escrevo um livro. Não me interessa nada isso. Se as pessoas estão bem ou mal apanhadas. Nem entendo bem o que é que quer dizer…

 

Quando descreve, por exemplo no Manual dos Inquisidores, a Sofia…

Não me lembro a Sofia, quem é a Sofia?

 

A Sofia é a mulher do João.

Não me lembro, esse livro já foi há muito tempo.

 

Então, pronto, é uma “menina bem” típica e acho que à medida que vamos lendo sobre ela identificamo-la imediatamente com um tipo de pessoa, que existe de facto. E essa capacidade de fazer personagens que existem mesmo, é fascinante.

Não sei. Sabe, uma vez estava em Nova Iorque com o meu agente, que é americano, e líamos o Hemingway. E eu dizia-lhe que as pessoas falam exactamente assim, que os diálogos dele eram assombrosos e o agente comentou: “Ai tu achas isso?”. E começou a ler em voz alta e ficou perfeitamente evidente que ninguém fala assim.

 

Ninguém fala como os põe a falar nos seus livros?

Não é isso que estou a dizer. É que tudo aquilo me parece tão verosímil quando lemos com os olhos, deixa de o ser quando lemos com a boca. Mas isso não me preocupa nada. A única coisa que me interessa é dar espessura humana às personagens. Caricaturas fazia o Eça de Queirós. Eu quero é que as personagens tenham uma espessura de carne. Embora sejam criaturas de papel, que seja possível senti-las respirar, viver, que nos comovam, como nos comovem as personagens de Tchekhov, percebe?

 

Mas quando anda pela rua, vai ao supermercado, olha para as pessoas, diverte-se a observá-las?

Não.

 

Não? Então de onde é que elas surgem?

Não, as pessoas não me divertem, não nesse sentido, estar a ver os tiques das pessoas, acho isso de uma arrogância miúda que não me interessa nada, para isso escreveria light literature, não me interessa nada também.

 

Mas de onde é que vêm as pessoas, se as não observa, como é que sabe o que elas são? Senão, só era capaz de escrever sobre si.

Eu nunca disse que sabia como elas eram.

 

Mas sabe, por isso é que as pessoas gostam de ler as coisas que escreve. Quando descreve uma cozinheira ou uma menina de Cascais.

Eu nunca descrevi uma menina de Cascais.

 

Então não descreveu?

Não, está a reduzir os livros a estereótipos. Não me interessa nada isso. Recuso qualquer explicação psicológica acerca das personagens.

 

Não estamos a pedir uma explicação psicológica das personagens. Parece-nos é que se diverte, não no sentido de troça, com a variedade de pessoas diferentes que existem.

Primeiro não acho que as pessoas sejam muito diferentes, depois as pessoas espantam-me muito mais do que me divertem. Sinto muito mais espanto que divertimento. Senti imenso espanto com essa história do Herman José da literatura. Se falasse do Camões, com que actor é que o comparava?

 

Não comparava com ninguém. Porque há-de ser só o senhor a provocar os outros?

Eu não costumo provocar ninguém. Estava aqui tão quietinho.

 

Não sou psiquiatra

 

Fale-me da sua mãe. Qual é a memória mais antiga que tem dela?

Isso é muito pessoal. Não sei. Nós vivíamos numa casa muito grande. Lembro-me de nascer o meu irmão Pedro, com dois anos ou três, nós somos seis, todos uns atrás dos outros.

 

Os seus avós eram muito importantes para si?

A minha família era muito importante para mim, porque eram duas famílias muito diferentes. A família do meu pai e a família da minha mãe. Tinham uma qualidade que é muito rara. Eram pessoas bem formadas.

 

O que é que entende por bem formado?

O mesmo que você.

 

É uma palavra muito típica de um certo meio social, não é?

Não sei, nunca pensei nisso. Até porque nenhum dos meus amigos nasceu no meio social onde eu nasci, que foi um meio que rejeitei muito cedo. Mas ser bem formado, para mim é ter bom carácter, e isso para mim é muito importante. Já está a querer colar-me uma imagem e eu recuso isso.

 

Não estou a querer colar imagem nenhuma!

Está, meninas de Cascais, o bem formado é uma expressão de um certo meio social…

 

Mas é, desculpe mas é. O bem formado significava que eram baptizados, que tinham valores cristãos, amavam o próximo como a si mesmos, eram honestos…

Por amor de Deus, ninguém ama o próximo como a si mesmo!!! O critério do bem formado tem a ver com a honestidade consigo próprio e com os outros, e se as pessoas tiverem isso eu não lhes peço muito mais.

 

Fala muito nos seus avós. A psiquiatria não liga muito aos avós, pois não?

Eu não me considero psiquiatra.

 

Então, médico?

Nem médico. Eu apenas escrevo, a medicina foi porque era necessário escolher um curso.

 

Mas dá consultas.

É só o que faço.

 

Mas se dá consultas e passa receitas reconhece-se a si mesmo o estatuto de médico, ou não?

Só aqui. Oiça, a medicina foi sempre para mim apenas uma forma de ganhar a vida enquanto necessitei do dinheiro dela.

 

E hoje, o que é?

Hoje venho aqui ver pessoas de quem gosto, sabe?

 

E pagam-lhe para isso?

Não, não me pagam nada.

 

Não recebe?

Recebo um vencimento por vir ao hospital, é evidente.

 

Para trabalhar.

Não, o vencimento é muito pequeno.

 

Quando se aceita ser funcionário de uma casa recebe-se um vencimento para desempenhar determinada tarefa. Portanto, ou recusa isso e diz deus, hei-de cá vir um dia, mas não é como funcionário, ou então vem como funcionário, neste caso médico, por muito que diga que não.

Não posso dizer-lhe o estatuto em que aqui venho. Agora, ser-me-ia difícil viver sem isto. Porque, sabe, escrever é uma actividade muito solitária, muito isolada, e para mim é importante ver pessoas.

 

Invejo as pessoas que têm fé

 

Como é Deus para os portugueses? Numa entrevista ao Libération diz que a nossa concepção de Deus é a de um Deus velho, ciumento, cruel, furioso e que faz troça dos homens.

Não creio que tenha dito isso.

 

Tenho aqui a entrevista.

Deixe ver. Ah, isto é do Gaudemar, coitado.

 

Inventou, ele também?

Não, é um jornalista do Libé. Isto tinha que ver com determinado contexto. A minha relação com Deus, o meu Deus, a minha ideia de Deus, não é isto.

 

Mas continua a pensar que é esta a ideia que os portugueses têm de Deus?

Não creio que tenha dito isto. Posso ter falado do Deus do Antigo Testamento, um Deus tremendo, a ideia que nos era incutida no catecismo. No outro dia vi uma entrevista admirável de um padre, José Tolentino de Mendonça, que me parece um excelente poeta – digamos que é os D’ Arrasar da poesia, já que gosta deste tipo de imagens – e que é um homem por quem fiquei cheio de respeito e de admiração e invejei imenso a fé dele. É a única coisa de que tenho inveja mesmo.

 

Não tem fé e gostaria de ter, é isso?

Penso que é próprio da fé ter dúvidas, não é? Mas depois de um longo afastamento, a minha reaproximação a Deus tem sido gradual. Mas é uma reaproximação conflituosa.

 

E tem a ver com essa preocupação com a morte?

Não, tem que ver com a minha relação com o transcendente.

 

O facto de estar numa fase em que tanta gente de quem gosta morreu, contribuiu?

As pessoas de quem a gente gosta vão morrendo. Aos 13 anos morreu o meu primeiro avô. Não, é mais antiga do que isso porque sempre pareceu que o nada não existe. Quando comecei a ler os escritos teóricos, sempre me tocou muito a profunda religiosidade daqueles homens que chegaram a Deus através da Física, da Matemática. Na relação com o sagrado e com Deus acho que aprendi muito com essas pessoas. Tenho inveja da fé. Acho que é a maior graça que uma pessoa pode ter.

 

E acha que é uma coisa para a qual a pessoa não contribui nada? Acontece?

Não sou eu que falo assim, estou a repetir o que dizem os doutores da Igreja e estou de acordo com eles, acho que é uma graça. Admiro pessoas que chegam à fé através do raciocínio lógico. Admiro e respeito.

 

Mas a ideia de Deus, de que quando morremos vamos para o Céu, é uma ideia consoladora?

Não sei. Tenho visto pessoas religiosas no sentido de fazerem disso vida, que diante da morte têm um pavor tremendo. Lembre-se do Miguel Marel, filósofo católico, que disse antes de morrer: “Vou finalmente saber se aquilo em que acreditava era verdade”.

 

Brincava sozinho

 

Tinha um urso de peluche quando era pequenino?

ALA (hesita) – Não, porquê?

 

É só uma curiosidade.

Não, nunca fiz colecção de nada.

 

Nem uma pista de comboios eléctrica?

Não. Não estou a perceber esta entrevista! Brincava sozinho. E agradava-me mais brincar com coisas que eu fazia ou coisas simples que me permitiam maior margem de invenção que os brinquedos já feitos.

 

Tem memória da coisa que mais o magoou quando era pequeno?

Muita coisa me magoou, mas também não é algo a que vá responder.

 

E tinha medo do escuro?

Não vou responder-lhe a isso.

 

Porquê? O João do seu livro tem!

Porque são coisas pessoais.

 

Não responde a coisas pessoais?

Não.

 

Mas também não gosta de responder sobre os seus livros. Nem porque é que escreve.

Não é bem assim. Quando as perguntas são bem feitas, respondo. Quando as perguntas são mal feitas, não respondo delicadamente.

 

Não respondeu delicadamente à maior parte das perguntas que a maioria dos jornalistas portugueses que o entrevistaram lhe fizeram?

Porque não eram bem feitas. Porque há perguntas às quais eu não respondo, como aquela do Herman José. São perguntas para outros escritores, não vou dizer agora nomes, mas não para mim.

 

Acha que está muito acima desses escritores?

Não estou acima nem abaixo. Não estou acima de ninguém, meu Deus.

 

Antes de começarmos a entrevista dizia que parece que os jornalistas portugueses só agora se lembraram todos de si.

Era inevitável que mais tarde ou mais cedo houvesse a unanimidade que havia no estrangeiro. Este último livro foi apenas o pretexto e é injusto em relação aos livros anteriores. Como acho ridículo darem às crónicas uma importância que elas não têm. Não são literatura.

 

As pessoas dão importância àquilo que as toca.

Porque as pessoas são preguiçosas e não sabem ler e aquilo é uma coisa facilmente digerível. Oiça, um livro bom é um livro que existe e que é escrito pelo leitor.

 

Sim, mas então porque é que escreve as crónicas? Se é assim, ao escrevê-las não está a ser honesto consigo próprio. Se quer ser escritor…

Se quero ser escritor???

 

Se é escritor…

Não sei se sou. O Hokusai, aos 80 anos, dizia: “Se Deus me tivesse dado mais cinco anos de vida eu tinha-me tornado um escritor”. Escritor é uma palavra muito pesada. Uma coisa é escrever livros, outra coisa é ser escritor. Não sei quantos escritores haverá em Portugal.

 

A questão que lhe coloco é: se acha que as crónicas são má literatura porque é que as escreve?

As crónicas têm uma função muito simples para mim que é divertirem as pessoas, percebe? E um livro acho que é muito mais que isso. Quando o Vicente Jorge Silva me falou, eu pensei isto é para ser lido os domingos por pessoas que lêem jornais e suplementos de jornais e por isso tem que ser uma coisa que as divirta, que as distraia e que não as faça pensar muito. Apenas isso.

 

Acha que não fazem pensar muito?

Acho que não. Está a dar-lhes coisas que não exigem uma atitude activa. Aliás, o que é que faz o sucesso de determinados escritores? Não me apetece nada citar nomes porque não me apetece dizer mal de ninguém. Mas, pronto, estrangeiros, a Susana Tamaro ou o Paulo Coelho, de que temos montes de equivalentes neste país. São coisas facilmente digeríveis e que não exigem de si nem atenção nem esforço, são recebidas passivamente, um pouco como a relação do drogado com a droga.

 

Mas continua a não responder ao porque é que escreve as crónicas.

Comecei a escrever as crónicas porque precisava do dinheiro. Esse foi o ponto de partida.

 

Mas depois continuou e até as publicou em livro.

Sim. E até aceitei que fossem traduzidas.

 

Então, não tem assim tão má opinião delas.

Acho que como literatura de entretenimento são agradáveis. Quando digo que são más, é no sentido de que não são literatura. Enquanto nos livros você joga a sua vida, nas crónicas não joga nada. É completamente diferente.

 

Mas algumas das crónicas têm muito de si.

Algumas. Que provavelmente são as menos apreciadas. Deu-me imenso prazer escrever sobre o Eugénio de Andrade. Ou escrever sobre o Ernesto. Ou escrever sobre o Zé. Mas penso que as pessoas gostam mais de outro tipo de coisas. Divertidas.

 

Em relação às suas filhas tem várias crónicas em que o afecto é muito manifesto.

As crónicas também são ficções, como tudo. O Malcolm Lowy dizia que não era mentiroso, criava ficções autobiográficas. Nós partimos de uma base real e depois inventamos sempre um pouco. É inevitável. Agora, ao contrário do que as pessoas podem pensar, sempre escondi muitas coisas pessoais, mas acho curioso e divertido pensarem que estou a falar de mim, quando a maior parte das vezes não estou. O que faz depois com que exista a tal imagem.

 

Mas nessas crónicas expõe-se, investe muito de si.

Oiça, as crónicas são quatro páginas por mês, eu faço-as em meia hora na cozinha, de manhã. Uma página de romance leva-me mais de um dia inteiro a trabalhar. Está a ver a diferença? Não passo mais de uma hora com aquilo, escrevo-as e leio-as uma vez, enquanto que nos livros estou a puxar palavras do poço e faço uma página com sorte em 12 horas de trabalho.

 

É nos livros que a minha vida se joga

 

Diz que o mais difícil é corrigir… É perfeccionista em todas as coisas que faz, em relação a si próprio?

Em relação a mim próprio, os meus amigos, as minhas filhas, toda a gente, estão sempre a criticar-me porque eu não ligo ao que como, não ligo ao que visto, não ligo aos automóveis, não ligo a nada, foi uma das coisas que os meus pais me deram, porque acabo por ser uma pessoa barata. Mas em relação aos livros sim, porque é aí que a minha vida se joga, sempre foi aquilo que eu quis fazer desde que me conheço, comecei a escrever muito miúdo. A minha mãe tinha-me ensinado a ler e comecei a escrever sem saber o que isso era, e era muito agradável. Até perceber (muito mais tarde) que escrever é uma coisa tremendamente difícil.

 

Cada livro é uma correcção do anterior, é isso?

Quando você escreve, a sua ambição é sempre muito simples, quer renovar e alterar a arte do romance. E há mil maneiras de o fazer e cada pessoa faz à sua maneira. Mas o desejo  de corrigir sempre tem que ver com a insatisfação que sinto perante os resultados que ficam passada a euforia do primeiro mês de acabar o livro – primeiro acho que fiz um bom livro e depois começa o sentido crítico a funcionar, as qualidades aparecem pequenas, os defeitos aparecem maiores e finalmente surge a convicção de que com mais trabalho…

 

Escreveu e deitou fora muitos livros, antes de publicar o primeiro…

Comecei a publicar por causa do Daniel (Sampaio). Escrevia os romances e deitava-os fora e recomeçava. Foi o Daniel que me fez publicar o primeiro. Até aí nunca me tinha passado pela cabeça publicar.

 

E gostou ou preferia ter ficado toda a vida a deitá-los fora?

Retrospectivamente, teria preferido começar a publicar mais tarde.

 

A partir de qual?

Talvez a partir do Fado Alexandrino. Depende dos dias. Os primeiros romances não têm nada que ver com aquilo que acho hoje que é a literatura. Porque a minha ideia de literatura se foi alterando com o tempo. Escritores de quem gostava aos trinta anos quando escrevi os primeiros livros não são aqueles de quem gosto hoje. E a ideia que tinha do que deve ser um romance é diferente da que tenho hoje. A minha ideia acerca das pessoas é diferente também, sou muito mais indulgente, se não fosse indulgente não estava aqui a dar esta entrevista.

 

Acha que somos assim tão intelectualmente menores?

Não tem nada a ver com isso. Não julgo as pessoas assim. Nem me acho superior a ninguém. Acho que sou orgulhoso, mas acho que tenho um orgulho humilde, não tenho a sensação de ser melhor que ninguém.

 

Diz que em Portugal as pessoas não sabem ler. É porque não lêem muito?

As pessoas não sabem ler porque não foram ensinadas a ler e ler ensina-se. Ninguém discute os prémios que dão aos químicos ou aos físicos ou aos matemáticos e toda a gente acha quem é que deve receber um prémio literário. As pessoas não sabem literatura. Lê as críticas e são desoladoras de ignorância. Mas isto também se passa no estrangeiro, não é um fenómeno português.

 

Mas quem é que o ensinou a si, porque é que é diferente da maioria?

Acho que sei muito pouco de literatura, mas sei mais do que sabia há 20 anos. As pessoas não sabem ler por várias razões. Primeiro, porque antes do 25 de Abril não convinha que as pessoas soubessem ler, a seguir ao 25 de Abril nunca houve uma política cultural, nem com um governo mais à direita ou mais à esquerda. Como não ensinam as pessoas a ouvir música. E ensina-se a ouvir Bach ou Beethoven ou Charlie Parker. Ensina-se.

 

E consigo como é que foi?

O dramático disso é que muitas vezes somos autodidactas. E depois a aprendizagem torna-se muito mais penosa, muito mais difícil, muito mais lenta e muito mais imperfeita.

 

Mas tinha livros?

Em casa dos meus pais havia livros, sim.

 

E liam-lhe alto os livros, quando era pequeno?

Sim, o meu pai lia-me alto poesia, romances, etc. Mas fazia poucos juízos de valor. Gostava que os filhos os fizessem como entendessem. Nisso tive bastante sorte. Aliás, acho que tive bastante sorte com a minha família.

 

Mas aprendeu a ler sozinho, no sentido em que fala, porque tecnicamente toda a gente sabe ler, não é?

É uma coisa muito curiosa, vamos falar de literatura, uma vez que é isso que eu tento fazer. Não se ensina, mas aprende-se. Há certa coisas básicas que se aprendem, técnica literária aprende-se. Mas há outras coisas que não se aprendem. As pessoas ou nascem com isso ou não nascem. Um bom leitor é tão difícil de encontrar como um bom escritor.

Há pouco era uma questão de ensino, agora é uma graça, como a fé?

Um bom leitor é como um bom escritor, exige trabalho, exige aprendizagem, exige tempo, exige disponibilidade.

 

Os seus livros em Portugal são muito lidos. Acha que a maior parte deles caem em saco roto porque afinal não são bem lidos?

Continuo a publicar em Portugal apenas por respeito aos meus leitores.

 

Respeita-os porque acha que os seus leitores sabem ler?

Ponho o problema ainda antes disso: nos afectos. Porque tenho recebido ao longo destes anos cartas e outras manifestações de tal maneira comoventes e tocantes que acho que não posso trair e sinto-me reconhecido às pessoas por isso. Agora não tenho dúvidas que há vários níveis de leitura. Quando o Eugénio de Andrade me diz: “Eu não percebo porque é que a Exortação aos Crocodilos vende tanto, porque é um livro tão difícil”, é preciso saber muito de literatura para apreciar este livro, está a ver? Eu percebo o que ele quer dizer, mas provavelmente haverá vários níveis de leitura, entende? Acho que ele tem toda a razão. A tese dele é, um pouco como Stendhal dizia, o leitor ideal é muito raro. Repare que há livros que as pessoas compram mas não lêem, compram para pôr na estante porque têm que ter na estante.

 

Sim, mas isso não são os seus livros!

Por exemplo, O Nome da Rosa [do italiano Umberto Eco], que vendeu tanto. Quem é que foi ler aquilo.

 

Nós lemos.

Está bem, mas muita gente… Por exemplo, fizeram uma edição do Ulisses [de James Joyce], um livro que acho extraordinário, e esgotou num instante. Pergunto-me se as pessoas leram aquilo, porque é um livro extremamente difícil de ler e é preciso entrar naquele arquipélago para poder começar a gostar daquilo. Há certos autores que são muito difíceis e que depois nos podem dar um prazer enorme se se consegue ultrapassar essa resistência inicial.

 

E considera-se um desses autores?

Não me considero nada. Embora ache que os livros que escrevo não são fáceis. Portanto, espanta-me que vendam tantos exemplares. Mas oiça, não sou um best-seller, nunca serei.

 

Mas o que estará por detrás desse fenómeno das pessoas comprarem os seus livros?

Há muita coisa que me espanta. Como me espantam as reacções excessivamente emocionais em relação aos meus livros, de aceitação ou de rejeição apriorística e acrítica muitas vezes. Quando os meus primeiros livros saíram, espantavam-me muito as reacções tão emocionais que as pessoas tinham em relação àquilo, que afinal eram apenas livros.

 

Os seus livros não são livros que contêm uma história, que tenham um fio narrativo, mas sim que se vão vivendo através das personagens.

Os meus primeiros livros têm um fio narrativo.

 

Sim, os primeiros, os autobiográficos.

Mas depois percebi que não era esse o caminho que me interessava. O que me interessava era o desafio, atendendo a que o fio narrativo num romance é o mesmo que a picareta e a corda para um alpinista, de construir um romance sem fio narrativo. Criar personagens, emoções, situações, etc., sem fazer por um lado escrita estática e sem a ajuda desse fio narrativo.

 

E conseguiu?

Não sei.

 

Medo de não voltar a escrever

 

E como é que cada novo livro vai ganhando vida?

É um mecanismo curioso porque no fim de um livro você sente-se completamente vazio. Há pessoas que têm dois, três livros na cabeça, isso nunca me aconteceu, tenho só um, quando tenho. Portanto, há uma sensação de vazio muito grande e o receio de não ser mais capaz de voltar a fazer outro livro. Isso é constante.

 

É o medo de não conseguir que o faz avançar para o próximo, para provar que é capaz?

O medo é muito grande porque você não concebe a sua vida sem isso. E em cada livro que acaba é a mesma dança, o mesmo receio. Depois deste último, estive oito meses sem ser capaz de escrever. Depois, a pouco e pouco, o livro começa a aparecer, vagas ideias, vagos episódios, vagas personagens, que vão confluindo, cristalizando até que, a certa altura, o livro pede para começar a ser escrito, da mesma maneira que quando está acabado rejeita mais trabalho sobre ele. Mas o difícil não é escrever, difícil é corrigir e deitar fora o que está a mais. É dramático, porque quando está a escrever a quente parece-lhe que está a ser capaz de transmitir todos os sentimentos, emoções, etc., e depois a frio, passado algum tempo, a diferença entre a intensidade dos sentimentos e os resultados que ficam no papel é tão grande que todo o trabalho é tentar diminuir essa distância.

 

Onde é que conhece todas aquelas personagens e todos aqueles sentimentos dos seus livros?

Sei lá, com este último livro tinha a sensação de estar a aprender coisas sobre as mulheres com as personagens. Punha-se-me o problema, eu nunca experimentei as vivências femininas, não sei o que é um orgasmo para uma mulher ou o sentimento da maternidade ou o viver a primeira menstruação.

 

E como é que foi encarnar aquelas mulheres?

A sensação que tinha é que elas estavam a ensinar-me coisas sobre o que eram as mulheres. O meu problema era até que ponto estas raparigas são credíveis e têm uma existência própria independente de mim. Penso que quando o livro é sólido, cria as suas próprias leis e então de nada valem os planos muito pormenorizados que se fez, porque caminha muitas vezes em direcções que de início não se esperava.

 

Por exemplo?

Aparece-me um pequeno episódio e depois é como encontrar um botão e fazer um fato para o botão. Normalmente é em torno desse pequeno pormenor, sem importância, que as coisas começam a cristalizar-se. E muitas vezes esse pormenor nem aparece no livro. Mas nunca mudei de processo. Nem irei escrever muito mais livros. Se viver o suficiente, queria acabar esse e escrever mais dois livros e acabou. Não escrevo mais.

 

Porquê?

Leva-se a vida a lutar para arranjar uma maneira própria de dizer as coisas e depois acaba-se por ficar prisioneiro dela. Não acredito em grandes livros que se escrevam antes dos 30 anos e depois dos 70. Há excepções, é evidente.

 

Reforma-se?

Não, vou fazer outras coisas que me apetece muito fazer e para as quais não tenho tempo. Trabalho muitas, muitas horas.

 

 

Tudo menos uma frase mal escrita

 

Falava na felicidade de encontrar pessoas melhores do que si próprio. Sente que as suas personagens lhe são superiores?

Nunca penso nisso quando estou a escrever. Como elas me aparecem já impostas, não escolho. O problema é que são pessoas com quem vou viver um ano, dois anos. Inevitavelmente, é difícil a gente viver com as pessoas sem gostar delas, não é?

 

Mas gosta das personagens todas?

Sim, gosto muito delas. Neste livro que estou a escrever é só uma rapariga a falar, não tem várias personagens, apenas uma – é outro desafio, agarrar numa miúda de 18 anos e pôr dentro dela tudo aquilo que ela não viveu, não sabe nada da vida, da morte, disto, daquilo, daqueloutro, tem olhos virgens e uma virgindade em relação às coisas e como pôr tudo dentro dela. Estou a viver com ela desde Outubro de 98. Agora começamos a estar um bocado fartos um do outro. Mas ainda vamos estar juntos mais uns meses.

 

E os olhos dela continuam virgens depois destes meses todos?

É difícil, só lendo, porque se se pudesse resumir um livro ou um filme para quê escrevê-lo ou realizá-lo, não é? E depois aquilo que conseguimos contar é a anedota, que é o menos importante. Para lhe poder contar um filme do Visconti contava-lhe a anedota que não tem importância nenhuma, o que tem importância é a forma como ele trata a intriga e não a intriga em si, que pouco interessa.

 

Nos seus livros, a forma é muito mais importante que o conteúdo.

O importante é o como, como escrever.

 

A forma como escreve. É isso que o distingue?

Exactamente. Porque os temas mais banais são os mais difíceis. Escrever uma história de amor é terrivelmente difícil. Eu gostava de fazer um romance de amor e é-me terrivelmente difícil. Colocar personagens em situações extremas torna-se tecnicamente muito mais fácil que tentar narrar o quotidiano. Para desbanalizar é preciso uma arte muito consumada. Como fazia o Tchekhov, aquelas peças onde nada acontece e as pessoas usam as frases mais banais deste mundo e ele consegue transmitir toda a dor, todo o sofrimento, toda a alegria do mundo. É extraordinário o trabalho que ele fazia. Ou a Jane Austen. Que no fundo é isso que nos toca, o que é que me toca num livro? É estar a ler e pensar: bolas! é isto mesmo que eu sinto e não era capaz de exprimir. É isto que acontece comigo e eu não reparava.

 

Mas é esse o efeito que as crónicas têm nas pessoas. As suas crónicas tocam as pessoas por aí.

Não sei. Estava a lembrar-me do início desta entrevista, quando falou no pobre do Herman José, em que estava a dizer exactamente o oposto do que está a dizer agora.

 

O seu mal é que pegou numa imagem que usei para tentar explicar uma ideia concreta e a interpretou como uma classificação do que escreve.

Obviamente, mas essas coisas para mim são muito importantes.

 

Não é nada óbvio!

Uma vez, o Herculano disse uma coisa ao Garrett, uma frase que acho assombrosa: “Por dez moedas, o Garrett é capaz de todas as porcarias, menos de uma frase mal escrita”. É evidente que me chocou a comparação com o Herman porque o Herman faz caricaturas e eu nunca quis fazer nenhuma caricatura.

 

Mas não fique chateado.

Não fiquei chateado, mas a caricatura a mim não me toca, pode fazer-me rir. O Herman faz-me rir, mas não me comove.

 

O que tentava explicar é que não pode ser uma pessoa triste  deprimida, como quer às vezes fazer crer – porque quando uma pessoa escreve, tudo na vida é material de trabalho. Por isso, tem que ser uma pessoa alegre, feliz.

Outro dia estava sentado nas Amoreiras divertidíssimo.

 

Perguntei-lhe se ia ao supermercado e olhava para as pessoas e disse que não.

Claro, eu não era bem olhar, era impregnar-me delas.

 

É divertir-se com a riqueza humana.

Não tem que ver com riqueza, tem que ver com disponibilidade para os outros, não ter pressa.

 

Mas pode tirar gozo.

Todos somos capazes de fazer a mesma coisa, basta ter tempo, ter disponibilidade.

 

Não é nada, isso é mentira!

Eu não sou mentiroso.

 

Então pronto, acho que tem uma sorte enorme em ser assim.

Em ser o quê?

 

Em ter talento, em olhar para as pessoas e para as coisas e ser capaz de construir…

Não é uma questão de sorte, é uma questão de tempo, eu tenho tempo, construí a minha vida de maneira a ter tempo para isso. Ou pensa que quando vim de África e tinha que trabalhar no hospital não sei quantas horas e depois como não tinha dinheiro ia fazer bancos para o Montijo e para aqui e para acolá, que tinha tempo? Não tinha tempo nenhum e isso reflectia-se obviamente no que escrevia.

 

A questão não é só de tempo. Nem todos podem ser grandes escritores.

Acho que o João Renan tinha razão quando dizia que não havia talento, havia bois, pessoas que marram, marram, e marram.

 

 

Notícias Magazine

Fevereiro 2000

fotos Lusa, caricatura de Miguel Soares

  • As pessoas acreditam praticamente em tudo, desde que não seja verdade. E fazem bem. Já que a verdade é desinteressante, aborrecida, perturba o bom andamento das coisas e ensombra a vida. Pelo contrário, a mentira move multidões, empolga a opinião pública, anima a política, abastece os media, favorece os negócios.
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